Qual seria o problema com datas que, aparentemente, só
envolve cozinha farta, presentes e comemorações? Essa é a pergunta com a qual
me confronto há muitos anos, porque às vezes nem eu sei direito a resposta. A
única coisa que sei com certeza é que não acho o fim de ano uma época convidativa
– sinto isso em minhas entranhas toda vez que a Ivete Sangalo começa a anunciar
o Natal dos supermercados Guanabara, ou que a Leader Magazine começa a anunciar
que já é Natal, vários meses antes de dezembro.
Quando olho para a tv, vejo artistas contratados para fazer
o que fazem de melhor: atuar. Dão seus melhores sorrisinhos e fingem que o mero
ato de desejar coisas boas uns aos outros vai esconder o fato de que nada que
façamos vai fazer o próximo ano ser da forma como queremos. Se conte em agir
conscientemente, mas sem esquecer que a imprevisibilidade faz parte do cerne
mais profundo do que chamamos de vida. Esse costume positivista (me refiro, num
neologismo, à prática do pensar positivo de maneira ingênua, não à corrente
filosófica que moldou o pensamento científico e artístico por anos) me lembra
muito uma comunidade dos tempos áureos do Orkut, onde os participantes se
dedicavam exclusivamente a postar desejos e pensamentos bondosos para o comentador
imediatamente acima. Isso foi na época da febre de fanfarronices como O Segredo
e livrecos sobre Lei da Atração, que tentavam dar um ar científico e filosoficamente
sério a mero senso comum.
Voltando ao tema do fazer em oposição ao mero desejar
preguiçoso, a questão é a relevância do que se faz. As pessoas tratam o “Ano
Novo” ou o “Natal” como entidades dotadas de vontade própria, de um humor
rascante que depende de ser agradado o máximo possível a partir do fim do segundo
semestre. Caso contrário, o temível e poderoso Ano Novo devorará a todos com
sua enorme bocarra, como Cronos devorou seus filhos.
É como eu disse, tudo depende do que fazemos. Se deixássemos
vivas todas as reflexões (mesmo as mais superficiais e enlatadas) que fazemos
nessas datas, o mundo não ia ser tão ruim quanto é a maior parte do tempo. Sei
que esse é um viés que todo indivíduo traz consigo, por mais que saiba a
verdade estatística da coisa, mas a verdade é que o mundo não é ruim a maior
parte do tempo, senão já teríamos nos aniquilado desde que algumas potências
adquiriram suas mais novas bombas nucleares; sei também que vivemos tempos bem
mais pacíficos do que é capaz de experienciar nossa mera percepção subjetiva do
espaço e do tempo. Viver em tribos sem uma lei imparcial, dependendo da palavra
de cada indivíduo não deveria ser mole - era como participar de Game of Thrones, só que
de verdade - sem contar os cadáveres devolvendo seus nutrientes à terra bem
pertinho de nós, como medusas imóveis e tão assustadoras quanto as sibilantes
da mitologia grega.
As pessoas tratam o 1º de janeiro de um modo politeísta demais.
É quase como se fosse uma divindade esperando por sacrifícios. Se bem que é uma
mistura bem eclética de divindades esse Ano Novo. Ao mesmo tempo em que se
parece com um deus tribal típico do judaísmo ou mesmo dos emotivos deuses gregos,
esse aí parece querer observar os atos morais das criaturas que aqui vivem. Mas
ele é pouco exigente, porque se conforma com sorrisinhos falsos ou euforia
sincera, porém passageira, e também com felicitações que não passam de fórmulas
já plastificadas.
Não sei se essa artificialidade sempre existiu ou se é um
problema que surgiu com o capitalismo. A verdade é que eu vejo lógica
mercadológica demais nisso tudo. É como um grande feirão, em que as pessoas tem
uma época certa pra comprar legumes e frutas mais baratos, assim como tem uma
época certa para exibirem o máximo de seu calor humano, porque no resto do ano
estão preocupadas com coisas mais importantes – elas mesmas, ou o futebol, ou o
salão, ou o programa de fofoca, o que no fim das contas sempre se trata de
personificações do nosso ego.
Quando digo “nosso” é porque não me excluo dessa lógica como
se fosse um menino dourado ou o próximo Dalai Lama. A diferença talvez esteja
no fato de que eu participo desse processo consciente dele, pelo menos mais do
que a maioria. Não fico arrumando desculpinhas pra manter isso e não ficar com
a consciência pesada como os que falam “Ah, mas mesmo sendo passageiro é bom
ter pelo menos uma data em que as pessoas se esforçam para serem boas. Melhor
do que não ter nenhuma.” Preguiçosos mentais sempre argumentam nessa linha,
sempre querem promover a manutenção do status
quo com uma desculpa qualquer, geralmente tendo a ver com como estaríamos
piores se não fosse o que fazemos agora.
Paralelamente a isso tudo tem a questão da tolerância. Me
chamam de intolerante e radical por eu dizer que acho sem sentido a obrigação
de ficar dando “Feliz Ano Novo”. São raras as pessoas que fazem isso tendo
algum sentimento verdadeiro por trás, a maioria, por outro lado, só quer
cumprir um protocolo social. Claro, não sou mal educado ao ponto de não
retribuir quando me felicitam, e fico até contente quando falam coisas
originais pra mim, mas ficar proliferando frases prontas como se fosse corrente
de whatsapp é demais. Digamos que eu seja judeu ou chinês. A minha data de Ano
Novo seria diferente, mas garanto que nenhum ocidental ia fazer festinha só
porque, pra mim, é Ano Novo. Por que uma pessoa que não vê nada de divertido em
comemorar essa data é obrigada a agir como se se importasse? A intolerância é
minha que critico, mas deixo as pessoas comemorarem o que elas quiserem ou dos
outros, que se veem no direito de me fazer lavagem cerebral?
Dizem os sábios que devemos saber a hora de enxergar como
uma águia, que vê de maneira ampla o que acontece por estar de uma posição
alheia, e quando enxergar como um reles primata bípede. No final das contas,
minha resistência não vale de nada. As pessoas vão continuar comemorando,
então, posso continuar me aborrecendo ou simplesmente tentar sentir um pouco do
que as pessoas sentem e viver o momento com elas, por mais que isso seja
tolice. Talvez isso seja extremamente sábio, mas ainda não cheguei a esse
estágio de treino mental – se é que um dia chegarei. Entendo as datas, entendo
a euforia das pessoas, mas não sinto. Talvez o treino mental desenvolva esse
tipo de habilidade, proporcionando um maior controle sobre a capacidade de
sentir, diminuindo o estado de refém de sensações, emoções, de coisas que ainda
nem chegaram a se tornar discurso, pensamento racional.