sábado, 29 de março de 2014

Elucubrações sobre as técnicas interpretativas de psicanalistas, xamãs e oráculos - De Matrix à Delfos

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Há momentos na vida em que devemos recusar um desafio, geralmente quando o resultado é demasiadamente óbvio por já termos experienciado coisas parecidas antes e visto que não foi proveitoso para nós. Isso vale para lugares e mesmo assuntos. Em relação ao segundo, posso dizer que comecei a evitar leituras psicanalíticas assim que comecei a ver o tema na faculdade (sim, eu estudo psicologia). Me pareceu por demais não apenas não-científico (o que não é um problema em si), mas principalmente pseudocientífico (apesar de Freud ter tido intenções bem positivistas e mecanicistas ao começar a desenvolver a área), o que necessariamente é algo que já de primeira deveria desqualificar determinada empreitada.

O mesmo serviria para os demais psicanalistas que romperam com a escola freudiana, como Jung. Em relação a este, sobre o qual nunca tinha lido nada nem na faculdade nem fora dela, minhas expectativas só pioraram, graças à disciplina de Metodologia Científica. Era ministrada por uma professora simpática, mas que insistia em não dar metodologia científica – ou melhor, teimava em dar o que ela entendia como tal.
Após passar batida por Karl Popper, proeminente filósofo da ciência, começou a dizer que Jung foi um cientista que comprovou que a mente era energia, que essa energia era a mesma que Einstein falava em sua célebre fórmula E=M.c2, que existia memória de vidas passadas, que poderíamos “regredir mentalmente” até a vida intrauterina, que a Mecânica Quântica explicava a psicologia e vice-versa etc.

Não perderei tempo desnudando e “desoterizando” cada uma dessas alegações obscurantistas, pois gostaria apenas de anunciar que resolvi entender por mim mesmo o que diabos Jung fez de tão importante – e também de verificar alegações surpreendentes, segundo as quais Jung teria comprovado a existência da alma e de uma memória elementar talhada no próprio universo, à qual a nossa memória “se liga” (inconsciente coletivo). Comprei O Homem e Seus Símbolos, livro que sintetiza para o público em geral todo o trabalho de Jung. Assim, resolvi fazer algumas anotações e divulgar aqui em meu blog o que venho achando da coisa.

Adentrando no trabalho de Jung
Logo nas primeiras páginas, encontramos uma introdução escrita por John Freeman (que entrevistou Jung certa vez), em que ele fala sobre a proposta de Inconsciente criada por Jung. Ele bebe bastante da fonte freudiana para pensar esse conceito (por isso o “I” maniúsculo), dizendo basicamente que existiria o consciente e o Inconsciente, em que cada um desses funcionaria como dois indivíduos dentro de nós.

Alguns dizem que o mundo no qual Alice entra é uma espécie de simbologia usada para falar do inconsciente, assim como a alquimia, por exemplo, acabaria reproduzindo processos inconscientes de maneira simbólica através do uso de elementos químicas e etc.
Para Freud, o Inconsciente era um mero repositório de experiencias e pensamentos perturbadores demais para serem mentidos ali ativos pelo consciente; portanto a outra instância desconhecida seria uma lixeira sombria, cheia de coisas obscuras que de vez em quando eram regurgitadas para fora dali através de sonhos, atos falhos e lapsos.

Para Jung, o Inconsciente não funcionava apenas como lixeira, mas também como uma instância psíquica (não acho nada mais obscuro do que esses termos...aff...) estruturada a partir de arquétipos (isso eu vou explicar melhor em outro texto). Sendo assim, sonhos poderiam não só revelar material censurado, mas também avisos importantes e benéficos para o consciente.

É essa concepção dos sonhos que me interessa aqui. Em O Homem e Seus Símbolos, Jung nos conta que foi um sonho que fez com que ele tomasse a decisão de aceitar o projeto que daria origem a esse livro. Uma noite ele teria sonhado que falava para uma platéia de não-médicos e que todos entendiam perfeitamente seu trabalho. Ele interpretou como um aviso para que embarcasse de vez no novo livro dirigido ao público leigo.

O leitor familiarizado com mitologia, percebe rapidamente que a psicologia junguiana preserva muito deste campo. Jung foi intensamente influenciado pelo seu conhecimento da área. Tanto é que os sonhos parecem exercer o mesmo papel que as antigas profecias exerciam no passado.

Sempre que um Imperador estava indeciso sobre invadir um novo território, ou se queria saber sobre se teria filhos saudáveis e homens que dariam continuidade ao seu legado, consultavam homens sábios que se diziam carregar mensagens dos deuses. O Oráculo de Delfos, na Grécia, talvez seja o exemplo mais conhecido, mas essa prática existia por todo o mundo, seja na figura de oráculos, pajés ou xamãs.

Oráculo de Delfos

Em Matrix, a personagem Oráculo dá conselhos enigmáticos e indiretos a Neo
Uma coisa que caracterizava todas essas situações é que as profecias dadas eram sempre altamente misteriosas, de modo que seu significado exato não ficava claro imediatamente. A personagem Oráculo, em Matrix, é um bom exemplo disso. As profecias que ela dirige a Morpheus e Trinity até são relativamente claras, mas a que ela dá a Neo só serve para deixar o rapaz ainda mais confuso. O caráter individual também é claro aí, tanto é que, para continuar no exemplo de Matrix, Morpheus insiste para que Neo não conte o que foi falado para ele. Aparentemente, é como se só o próprio indivíduo fosse capaz de desvelar o significado do sonho ou da profecia. Para Jung, é dessa exata maneira que devemos encarar nossos sonhos.

O que eu achei disso?
Inicialmente, posso dizer que isso nem de longe é uma teoria científica dos sonhos. Então não sei por que os junguianos insistem tanto em falar que as teorias de Jung são científicas. No entanto, não existe nada pejorativo em não ser científico, pois existem perguntas que a ciência não está realmente habilitada a responder – tudo bem, algumas perguntas podem também ser pseudoquestões. O maior problema é quando insiste-se em tornar ciência aquilo que não é. Então, partamos desta confortável premissa: a psicologia de Jung (psicologia analítica, como é chamada) não é uma psicologia científica, mas também não é pseudocientífica, a menos que alguém insista que ela é científica sem ser.

"Conheça-te a ti mesmo", placa que ficava na entrada do Oráculo de Delfos, assim como a que também ficava na cozinha da personagem Oráculo, em Matrix. Talvez a frase seja uma referência à finalidade das instruções à lá Mestre dos Magos, que serviam para o 'orientando' matutar sobre si mesmo e seu destino, encontrando um caminho para si próprio no processo. 
Se somarmos a esse pressuposto a semelhança da técnica e conceitos da psicologia analítica às práticas proféticas ancestrais, então teremos uma bela tentativa atual de reprodução destas. E podemos até mesmo usar isso para explicar por qual motivo essas práticas interpretativas eram tão difundidas no passado por culturas que não poderiam aprender isso através de influências umas sobre as outras, tanto quanto para entendermos como esse fenômeno se manifesta ainda hoje através de cartomantes, horóscopo, búzios e terapias (ditas científicas) de interpretação de sonhos (!).

No meu ponto de vista (e aqui insiro essa expressão clichê não para me esquivar de qualquer crítica que façam à minha opinião, mas para deixar claro que eu não li isso em lugar algum, estou aqui apenas escrevendo meus palpites mesmo), nossa natureza humana nos predispõe a achar sentido e coerência onde pode não haver. Enxergamos faces em Marte, vemos elefantinhos em nuvens e enxergamos mensagens pessoais em sonhos. Todos esses fenômenos podem ter em sua natureza o mesmo processo fundamental – processos esses que também nos beneficiam quando conseguimos enxergar padrões que realmente existem.

No entanto, essa “constatação” não me torna tão certo sobre a necessidade de continuarmos usando práticas interpretativas. No exemplo que usei relatado pelo próprio Jung, seu sonho foi usado por ele como incentivo para se engajar numa tarefa que no fim das contas foi positiva, assim como em Matrix, Morpheus, Trinity e Neo pareceram ter suas decisões influenciadas pelo que Oráculo tinha profetizado. Pode ser que I Ching, quiromancia e profecias sejam meios válidos não para se prever o futuro ou para que uma instância misteriosa de nós mesmos se comunique conosco, mas para oferecer caminhos a alguém que esteja com dúvidas por onde seguir. Talvez essa indicação abstrata sirva para refletir e se pensar bem no que se pode e no que ser deve realmente fazer.

E, claro, isso só funciona de verdade porque a pessoa acredita fielmente que aquilo foi uma mensagem mandada por alguém capaz de dar uma mensagem útil – seja uma divindade, um homem santo, um sonho mandado pelo inconsciente etc. Aquilo tem que ser provido de determinada autoridade para ‘funcionar’.

Bom, não arrisco dizer que tracei uma teoria revolucionária sobre o mecanismo por trás de técnicas interpretativas e de previsão, apenas tracei sugestões. E pelo que ando lendo em O Homem e Seus Sìmbolos, talvez Jung não achasse isso absurdo, ao contrário de seus discípulos atuais que teimam em fazer uma mistureba louca entre ciência, pseudociência e esoterismo, quando em Jung originalmente parecia não existir nada disso.