sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Divagações sobre uma cultura ébria

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Festa baconiana, do deus Baco, padroeiro das bebidas. Qualquer semelhança com o mundo real não é mera coincidência
Permanece um mistério o motivo pelo qual a bebida alcoólica é celebrada como uma espécie de ambrosia (a antiga comida sagrada dos deuses do Olimpo), ou talvez seja só resistência em aceitar os motivos frívolos pelos quais são adoradas.

Tenho uma baixa tolerância a bêbados – a seus vários tipos, na verdade. Não consigo dizer com tanta certeza o porquê, mas talvez tenha algo a ver com a criação artificial do tal ar agradável que todos eles exalam.

A meu ver, o álcool não deixa ninguém divertido, a não ser que estejamos falando de um indivíduo no início de um estado ‘pré-ébrico’, pois aí o desamarrar das rédeas do autocontrole pode torna-lo mais falante, mais capaz de fazer piadas etc. Mas chega um momento, aquele em que a pessoa começa a beber como um peixe, em que todos o veem como o grande protagonista de um grande circo psicodélico, mas preferem fingir que está tudo ok. No fundo, os bêbados é quem mandam. Ai de quem falar mal deles.

Talvez isso tenha a ver com a pretensa aspiração de eterna juventude das pessoas desse século. Mesmo sóbrios todos se preocupam em mostrar elementos que denunciem sua fulminante juventude, tanto a física quanto a de caráter – o que significa que ser impulsivo, ironizar e não levar nada a sério o tempo todo está entre uma das características mais desejáveis de duas entre três pessoas quaisquer. Engraçado que antigamente ainda havia a preocupação de mostrar seriedade hipocritamente para os outros, principalmente se fosse algo muito ‘holofotizado’, como aparecer na tv; mas recentemente vi um programa em que os alunos afirmavam com a maior cara deslavada, de sorriso no rosto, que estavam no colégio pra colar e pra zuar.
Não, Sócrates não está recebendo um cálice de vinho, apesar de ter sido conhecido como um beberrão filósofo nato. 
Enfim, voltando à bebida, que faz parte desse mundo de ‘fetichização’ da juventude e de seus costumes... Comecei a me confrontar com isso no início da idade adulta, quando meus amigos do nada decidiram que se divertir era reunir a galera pra jogar vídeo game no domingo e levar umas latinhas. A presença do vídeo game e do visual mais nerd não deixava a coisa ruim, mas sempre me perguntei sobre a gênese desse hábito que pra mim não é muito natural. É como se as pessoas aprendessem por observação dos mais velhos que o modo correto de jovens e adultos se divertirem é a bebedeira  - mais ou menos como crianças bem pequenas que aprendem parte do que é agradável e desagradável por intermédio da expressão facial dos seus pais.

O mesmo elefante rosa na sala aparece em festas típicas onde ninguém se diverte, mas é obrigado a achar que está se divertindo porque, afinal, é o que a tradição diz que é diversão. 

Não acho bebida tão legal e tenho certeza que muita gente também não acha, mas é como eu disse: os beberrões são os ases da vida social, então o comportamento deles deve se respeitado.

O problema é que para os sóbrios, essas festas começam a cheirar à Zorra Total, com piadas que geram risadas inicialmente, mas que depois se tornam repetitivas e sem noção. Tenho certeza de que grande parte dos risonhos mantém seus músculos zigomáticos arreganhados sem saber muito bem o porquê.

É como uma vez aconteceu no curso de inglês. Estávamos vendo Friends e um amigo riu. Meu ‘inglês auditivo’ nunca foi dos melhores, então não pude entender a piada do personagem, que tinha feito toda a turma rir, inclusive esse cara. Perguntei  o que tinha sido falado e ele, mesmerizado pela tv, disse: “Não sei...HAHAHAHA”. Minha cara deve ter sido algo como “oO”.

Não é exagero, mas isso foi o mais próximo que fiquei de sentir na pele a cena final de A Piada Mortal (só que eu fui mais mal humorado que o Batman). 



Mas pra tornar todo o show completo, ainda existem os vários tipos de bêbados. O bêbado filósofo é aquele que, num momento inesperado, diz com voz afetada alguma máxima que parece soar como alguma profecia do Oráculo de Delfos, mas que em termos de profundidade parece mais uma mensagem do ET Bilú. Os outros ébrios podem celebrar o dito, mas quem está puro pode achar uma verdadeira tragicomédia grega.

Um dos espécimes mais conhecidos, entretanto, é o bêbado depressivo. Pode variar do choro ‘esgoelante’ até o mero choramingar, mas ambos tem a sensibilidade à flor da pele. Geralmente o passado é o seu recanto, tirando de lá todos os motivos para o seu lamento.

O bêbado compassivo também volta e meia é avistado por aí. A pessoa exibe uma face inspirada no Curinga, com um sorriso suave e crônico. Os pensamentos e o comportamento também podem ir em direção de uma inabalável compreensão e compaixão universais. É um bêbado iluminado.

Espíritas diriam que tenho uma implicância de reencarnações passadas com algumas maneiras de usar drogas recreativamente, mas não quero passar uma visão misantropa. Não vamos jogar o bebê fora junto com a água do banho. 

Em relação a certas propriedades dos subtipos de pinguços, ser compassivo, compreensivo e divertido é completamente normal e desejável. Mas tê-los como resultado de uma fabricação é paradoxal. A pessoa não está em juízo perfeito, está atordoada em algum nível. Além do mais, são estados passageiros. Não vejo como desejável a perspectiva de só ser amoroso, por exemplo, sob efeito de uma substância psicoativa recreativa. É como tomar uma pílula da compaixão toda vez que avistar um mendigo. Pode ser que esse seja o caminho para a paz mundial, mas também pode ser a receita para trazer ao mundo uma falsidade sem precedentes.

Quando precisamos de uma substância psicoativa pra modificar nossos pensamentos, ações ou emoções é sinal de que não estamos sabendo lidar com aquilo devidamente. Um paciente deprimido possivelmente não conseguirá se engajar num processo terapêutico sem tomar algum medicamento antes. 

Pela própria natureza do transtorno, o indivíduo estará inebriado demais para ter a capacidade de observar seus próprios pensamentos e ouvir o que o terapeuta diz, quanto mais fazer o que é dito. A diferença das drogas médicas e das recreativas é que as primeiras serão administradas de modo a não criar dependência e visando sua máxima eficiência, enquanto as outras serão tomadas sem critério algum.

Outro ponto que acho desconcertante é a ostentação do copo. Sujeitos em posse de um contendo a bebida áurea frequentemente  o ostentarão da forma mais espalhafatosa possível. Não vejo essa mesma proatividade para dividir açaí ou suco de laranja, mas é fato que os amigos de copo são atentos às necessidades alcoólicas do outro.

Enfim, esse post foi mais uma divertida (e um pouco exagerada) catarse sobre as inconveniências sociais causadas por alguns usuários de bebidas alcoólicas, sem pretender encontrar a solução para os males do mundo ou reinventar a roda. Meu conhecimento continua o mesmo, e o seu também. 


O meu desconhecimento  sobre a popularidade dos bebuns continua o mesmo. Mas talvez seja só a recusa em aceitar que, assim como as pessoas preferem fabricar momentos vividos pra exibir no facebook, também fabricam diversão à custa do poder de populares drogas lícitas.