O ano é 2022. Os EUA
diminuíram em 90% seus índices de criminalidade, o país nunca vivenciou tanta paz;
talvez nem o mundo tenha visto. Dizem que não existe almoço grátis na
natureza, e eu acho que essa frase tem algo em seu cerne que diz muito sobre esse
cenário futurista. Paraísos tem um preço, e no caso dessa realidade distópica, o preço é
pago em um dia, em troca de 364 dias de paz. É o Dia do Expurgo. A história fora marcada em antes e depois a partir do momento em que foi proposto que todos os
americanos vivem em absoluta paz e solidariedade em troca da oportunidade de
expurgar toda a sua raiva, ódio, intolerância e agressividade em apenas um dia
do ano; neste dia, a lei não funciona, emergências não funcionam, policiais
tiram folga. Todos sem exceção são liberados para matar, estripar e mutilar
quem quer que seja. Todos os maus sentimentos e intenções seriam expurgados,
como numa catarse psicopática.
Essa é a sinopse de The Purge, que estreou este ano. A plot
é original pois nos dá a oportunidade de refletir sobre a nossa natureza e a da sociedade em que vivemos. Mas, para além das questões sobre se somos realmente
esses animais perversos buscando oportunidades para exercer violência, esse
filme me trouxe importantes questões em relação ao Natal.
Sem entrar no mérito exato do significado ancestral do Natal
(antes mesmo de se tornar uma festa cristã) podemos abreviar o problema,
definindo-o como uma festa que preza pela união familiar. Estranhamente, neste
dia, todos aqueles que passam por você na rua e fingem não lhe conhecer, ou pessoas
em geral sem muita intimidade, se tornam amigos de infância. Todos estão
querendo dar e receber “Feliz Natal”, sendo ou não cristãos.
É um entusiasmo que provavelmente é aprendido por meio de
condicionamento e modelagem ao longo da infância. Crianças vêem os pais agirem
com súbita e estranha alegria dia 24 à meia noite e com o tempo os filhos
começam a copiar isso, pois percebem o reforço social envolvido na prática. Mas
tente perguntar o motivo exato da animação, aposto que estarão em apuros para
responder.
Esse ano pensei em algo interessante: talvez essa alegria e
união súbita seja uma espécie de expurgo. Durante todo o ano as pessoas parecem
estar estranhamente indiferentes em relação às outras. Vivemos num mundo
consumido pelo trabalho, pela produção, e isso pode significar que ao chegarmos
em casa tenhamos pouca disposição para ainda ter uma convivência afetuosa e
cuidadosa com esposa/marido e filhos. Talvez estejamos mais antissociais
também, em certo sentido. Eu mesmo sou um hater de
desconhecidos que puxam assuntos aleatórios em ônibus ou fila de banco; eu só
queria chegar ao meu destino lendo um livro ou em silêncio, ou pagar minha
conta em paz e rápido. É difícil ser diferente tendo nascido já num mundo
assim - o que não significa que se está certo ou errado, aí é outra história.
Portanto, pode ser que em apenas um dia do ano as pessoas
resolvam expurgar toda a alegria, euforia, amor, compaixão e cumplicidade que
elas não conseguem manifestar ao longo dos 364 dias restantes.
Em The Purge, é
exatamente isso que acontece, só que com o extremo oposto desses sentimentos. O contrangimento nasce quando começo a perceber
que as reações do expurgo do filme são muito mais legítimas do que as do dia do
Natal – o nosso dia real do expurgo. E é obviamente aterrador pensar nessa
realidade distópica, em que as pessoas conseguem liberar mais genuinamente a
agressividade do que a bondade. Mas quando vejo os sorrisinhos amarelos e os
abraços planejados do “feliz natal”, acabo não tendo como pensar diferente.