segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Os Filósofos Estavam Certos Sobre o Surgimento da Propriedade Privada? - As Raízes da Noção de Posse em Seres Humanos

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Territorialidade e posse em humanos e outros animais
Nossa sociedade se sustenta com base em vários pilares, um deles é a propriedade. Esse é um dos motivos pelos quais podemos nos chamar de capitalistas, afinal, se vivêssemos sob uma lógica comunista não haveria sentido a existência desse conceito. Toda essa discussão política dá a entender que essa é uma questão de natureza puramente sócio-política, sem nenhuma implicação individual, e ainda, sem nenhuma implicação relacionada a nós como espécie. Pesquisas muito curiosas sugerem que outros animais também são capazes de chegar a estruturas sociais que talvez sejam os rudimentos da capacidade bem mais ampliada que existe em nós, de criar um sistema econômico baseado na posse. E experimentos com humanos mostram que nós precisamos de bem menos fatores sociais do que filósofos um dia pensaram, para essa criação. 



Defendability Theory
Agapornis - ave territorialista
Brown (1964), um pesquisador de pássaros que investigava seus esquemas de territorialidade e como eles eram criados, mostrou que existem alguns que podem ser bem possessivos quando se trata de território. Por outro lado, existem aqueles que não possuem a mesma relação de territorialidade. Segundo o pesquisador, em ambientes onde os recursos alimentícios, a oferta de parceiros sexuais e de habitação eram bem estáveis, nascia a chamada territorialidade clássica, em que o pássaro poderia fazer daquele local uma verdadeira propriedade privada, patrulhando suas fronteiras, defendendo (lutando) contra a entrada de intrusos e estabelecendo seu ninho. Mas existiam locais onde a oferta de recursos não era algo tão constante e estável. Pense que, talvez, o tipo de fruto do qual a espécie em questão se alimenta seja suscetível às estações ou a qualquer outra variação ambiental que não o torne um bem disponível de forma estável. O pássaro, se quiser sobreviver, terá de procurar outro local onde há desse suprimento. O mesmo vale para a oferta de parceiros sexuais. Se for uma espécie nômade, ou se (no caso do macho) a fêmea somente for, o macho terá que ir até às fêmeas. Quando esta é a situação, o animal não estabelece o mesmo tipo de relação com o território. Geralmente, ele se restringe a deixar seu ninho e filhotes por ali, saindo para se alimentar e acasalar em locais mais longinquos, patrulhando e protegendo um curto raio tendo como centro o ninho. Essa idéia é conhecida como defendability theory. Ela mostra que a visão de que os animais não-humanos são dotados de instintos fixos e imutáveis, como se fossem máquinas rústicas, é extremamente grosseira. É importante ressaltar que essas variações em como a espécie lida com o território não são fixas, mas flexíveis, ativadas conforme as necessidades que o ambiente provoca no animal.



Propriedade de acordo com filósofos
As teorias tradicionais sobre as propriedades em nossa espécie vieram de filósofos que eram mais antropólogos de gabinete (como são chamados os estudiosos que bolam teorias sobre o comportamento humano mas tudo de dentro do conforto de seus escritórios e em cima de suas poltronas, sem fazer uma pesquisa de campo, recorrendo somente à livros) do que estudiosos realmente gabaritados que buscassem evidências coletadas em campo. Rousseau (1762), Locke (1689), Hobbes (1651), Bentham (1802) e outros, achavam que para que a noção de propriedade se desenvolvesse, era preciso que existisse comunicação verbal, trabalho produtivo, instituições legais, autoridades e outras complexas estruturas sociais. Em um excelente estudo, DeScioli (2011) tentou verificar empiricamente se, ao contrário do que supunham os filósofos, o nascimento das propriedades humanas não estivesse relacionado, na verdade, com características humanas mais básicas, como o surgimento de conflitos. Além disso, foi cogitada a idéia de não serem necessárias tantas estruturas sociais complexas como as descritas acima. 


Testando os Precursores da Territorialidade e Propriedade em Humano 
Para testar essas hipóteses, o pesquisador utilizou um jogo virtual criado especialmente para a pesquisa. Cada participante jogava com um avatar, que poderia ser grande ou pequeno (as diferenças de  tamanho eram bastante óbvias). O ambiente consistia num cenário onde o avatar podia se deslocar à vontade. Foram selecionados 120 universitários para participar do experimento no laboratório de Ciência Econômica da Universidade de Chapman, e as jogadas eram divididas em rodadas em que 10 participantes jogavam por vez. O objetivo do jogo era ganhar o máximo de alimento possível, que depois do término do experimento seriam convertidos em dinheiro para os participantes da pesquisa. Mas a tarefa não era tão fácil quanto parece. Os avatares transitavam pelo mapa à procura do alimento (berries) que se encontrava em arbustos espalhados pelo local. Ao entrar nos tais arbustos para pegar o alimento, caso lá já estivesse presente outro avatar, algumas opções eram dadas para o avatar intruso: sorrir, brigar pelo recurso ou deixar a moita. Existia uma pontuação referente a cada escolha, de forma que o sorriso era neutro (sem pontos), a opção de deixar o local também, e a opção por conflito resultava em um dano certo para os dois, tanto para o vencedor quanto para o perdedor da briga. Mas, em compensação, o vencedor ficaria com a fonte de alimento só para ele. Se o jogador encontrasse um arbusto sem nenhum avatar ainda dentro, pontos eram ganhados. Em síntese, esse é o mecanismo central por trás do jogo. Mas existem algumas importantes variáveis introduzidas pelos experimentadores. 

 

Os arbustos do jogo podiam ser de dois tipos: marrom ou verde. O marrom fornecia menos quantidade de alimento em relação ao verde. Sendo assim, existiam dois modos de organização dos arbustos: uniforme e desigual. Na primeira, só existia ou um tipo de arbusto ou outro, logo, todos eles podiam oferecer a mesma quantidade de recursos. Na segunda modalidade, a quantidade de arbustos era dividida entre os dois, isto é, havia a desigualdade de recursos fornecidos pelos arbustos, uns oferiam mais, outros menos. Os experimentadores, que observavam o experimento apesar de os participantes não saberem disso, controlavam a quantidade de arbustos disponíveis no modo desigual do jogo, para evitar que ao encontrar um arbusto verde, mais rentável, o participante permanecesse nele indefinidamente; assim, modificando-o de verde para marrom, o pesquisador fazia o avatar cogitar a idéia de permanecer ali numa atividade menos rentável ou então burcar por uma melhor opção.
Também havia um controle sobre o tamanho dos avatares. Um dos tipos de avatares possuía altura bem pronunciada em relação ao outro, mais baixo. Essa variável influenciava de maneira bem marcante as interações entre o avatar residente (que já estava no arbusto antes de outro avatar chegar) e o recém-chegado ou intruso. 


Resultados
Efeitos da Variação do Ambiente


- Na situação de variação desigual do ambiente, os avatares passaram mais tempo nas moitas e nas interações sociais do que na condição uniforme.


- Tanto na condição uniforme quanto na desigual foi gasto mais tempo circulando pelo ambiente do que dentro dos arbustos, mas na condição desigual o tempo gasto dentro dos arbustos era maior comparando com o outro. 


- Na condição uniforme, o número de interações que resultavam em conflitos foi consideravelmente inferior à condição desigual de recursos, além de no primeiro, nenhuma morte ter ocorrido, ao contrário do segundo. Consequentemente, mais gastos com brigas ocorreram no modo de ambiente desigual do que no uniforme. 


- A opção de “sorrir” para o outro avatar foi selecionada mais vezes na condição desigual.
Efeitos da Assimetria no Tamanho dos Avatares


Essa seção de análise teve como objetivo verificar se o tamanho dos avatares estava relacionado com o número de vitórias (entendidas como quando dois avatares estavam num arbusto e um deles saía e o outro permanecia; o que ficava era o vencedor).
Veja o gráfico abaixo:
Retirado de DeScioli (2011)



As Implicações para a Noção de Propriedade
Como já foi dito, por muito tempo os filósofos disseram (e hoje historiadores e outros, repetem) que para que o modelo atual de propriedade fosse criado, muitas outras estruturas sociais teriam que ter existido. O experimento descrito mostrou que é preciso bem menos do que uma linguagem verbal, autoridade legal e outras complexidades para que a noção de propriedade nasça. 


Experimentos em outros animais mostraram que essa noção pode surgir perante situações onde não existe quantidade uniforme de recursos distribuídos, disputa por fêmeas e presença de predadores (Brown, 1964; Kokko, Lopez-Sepulcre & Morrell, 2006; Maher & Lott, 2000; Maynard Smith, 1982; Parker, 1974). O experimento realizado por DeScioli (2011) sugere que esse também é o caso dos humanos. Basta dar uma olhada (na seção acima) nas diferenças existentes nos ambientes em que os recursos eram distribuídos igualmente e nos outros, onde os recursos eram disponibilizados de forma irregular pelo território. A distribuição uniforme fez os avatares ficarem mais pacíficos em detrimento da outra condição (desigual), em que houve aumento do número de conflitos e até a ocorrência de uma morte. Ou seja, no ambiente onde havia a necessidade de disputa por alimento, era preciso administrar a agressividade para proteger as fontes de alimentos e também para tentar tomar fontes já dominadas por outros avatares. E isso toca num importante ponto, que nos leva mais diretamente à questão da propriedade. 


No item mostrando os resultados das assimetrias no tamanho dos avatares, vemos que os avatares de maior tamanho levavam considerável vantagem sobre os menores. Mas um interessante fenômeno adicional foi observado (observe o gráfico na seção de assimetria dos avatares). A vitória nas disputas por arbustos não era determinada somente pelo tamanho do avatar, mas pela relação entre tamanho e intruso X residente. Explico. É o chamado Human Residence Behavior, isto é, o fato de um avatar ter chegado primeiro a uma moita fazia com que ele lutasse pela posse do local de forma muito mais atia do que os avatares que entravam no lugar, os intrusos. O gráfico mostra que quando dois avatares pequenos, um intruso e um residente, brigavam, o residente levava vantagem e vencia expressivamente mais. No caso de um avatar grande e intruso contra um pequeno e residente, o residente, surpreendentemente, levava vantagem, apesar de o experimento não ter encontrado um número de vitórias estatisticamente relevante; mas já é algo digno de nota, pois o mais lógico seria que o maior avatar vencesse. E os resultados prosseguem mostrando que a vantagem na maioria das vezes está com aquele avatar que já estava com a “posse” do arbusto. 


Esses estudos mostram que a cognição humana e não-humana dispõe de mecanismos adaptativos, isto é, não uma questão de instintos fixos, mas de capacidades fluidas que se encaixam da melhor maneira possível às necessidades ambientais. Isso mostra que falar de uma natureza humana não significa falar de comportamentos fixos e robóticos, mas de tendências de agir de determinada forma dependendo do ambiente em que nos encontramos, das relações existentes nesse ambiente. Não podemos esquecer que, afinal, é essa característica inerente à natureza humana, de se adaptar aos mais diversos locais é que fez com que nos tornássemos a espécie dominante no planeta. E isto influencia diretamente o modo como um determinado grupo humano concebe a “propriedade”. Isto é, uma noção que não é smplesmente construída socialmente, de maneira aleatória, contingencial, mas na forma de uma interação entre a cognição humana, cujo modelo básico (defaut) foi moldado pela seleção natural, e a disposição de recursos ao seu redor. 


Referências
- Bentham, J. (1802). The theory of legislation. In C. K. Ogden (Ed.), London:
Kegan, Trench, Trubner & Co.


- Brown, J. L. (1964). The evolution of diversity in avian territorial systems.
Wilson Bulletin, 76, 160169.


- DeScioli, P., Bart J. Wilson, (2011), The territorial foundations of human property, Evolution and Human Behavior 32 (2011) 297–304.
- Hobbes, T. (1651). Leviathan. Retrieved from Project Gutenberg. http://


- Kokko, H., Lopez-Sepulcre, A., & Morrell, L. J. (2006). From hawks and
doves to self-consistent games of territorial behavior. The American
Naturalist, 167, 901912.


- Locke, J. (1689). Two treatises of government. Retrieved from Project


- Maher, C. R., & Lott, D. F. (2000). A review of ecological determinants of
territoriality within vertebrate species. American Midland Naturalist,
143, 129.


- Maynard Smith, J. (1982). Evolution and the theory of games. Cambridge:
Cambridge University Press.


- Rousseau, J. J. (1762). The social contract. Retrieved from the Constitution Society. http://www.constitution.org/jjr/socon.txt.


- Parker, G. A. (1974). Assessment strategy and the evolution of fighting
behavior. Journal of Theoretical Biology, 47, 223243.