Territorialidade e
posse em humanos e outros animais
Nossa sociedade se sustenta com base em vários pilares, um
deles é a propriedade. Esse é um dos
motivos pelos quais podemos nos chamar de capitalistas, afinal, se vivêssemos
sob uma lógica comunista não haveria sentido a existência desse conceito. Toda
essa discussão política dá a entender que essa é uma questão de natureza
puramente sócio-política, sem nenhuma implicação individual, e ainda, sem
nenhuma implicação relacionada a nós como espécie. Pesquisas muito curiosas
sugerem que outros animais também são capazes de chegar a estruturas sociais
que talvez sejam os rudimentos da capacidade bem mais ampliada que existe em
nós, de criar um sistema econômico baseado na posse. E experimentos com humanos
mostram que nós precisamos de bem menos fatores sociais do que filósofos um dia
pensaram, para essa criação.
Defendability Theory
Agapornis - ave territorialista |
Brown (1964), um pesquisador de pássaros que investigava
seus esquemas de territorialidade e como eles eram criados, mostrou que existem
alguns que podem ser bem possessivos quando se trata de território. Por outro
lado, existem aqueles que não possuem a mesma relação de territorialidade.
Segundo o pesquisador, em ambientes onde os recursos alimentícios, a oferta de
parceiros sexuais e de habitação eram bem estáveis, nascia a chamada territorialidade clássica, em que o
pássaro poderia fazer daquele local uma verdadeira propriedade privada,
patrulhando suas fronteiras, defendendo (lutando) contra a entrada de intrusos
e estabelecendo seu ninho. Mas existiam locais onde a oferta de recursos não
era algo tão constante e estável. Pense que, talvez, o tipo de fruto do qual a
espécie em questão se alimenta seja suscetível às estações ou a qualquer outra
variação ambiental que não o torne um bem disponível de forma estável. O
pássaro, se quiser sobreviver, terá de procurar outro local onde há desse
suprimento. O mesmo vale para a oferta de parceiros sexuais. Se for uma espécie
nômade, ou se (no caso do macho) a fêmea somente for, o macho terá que ir até
às fêmeas. Quando esta é a situação, o animal não estabelece o mesmo tipo de
relação com o território. Geralmente, ele se restringe a deixar seu ninho e
filhotes por ali, saindo para se alimentar e acasalar em locais mais
longinquos, patrulhando e protegendo um curto raio tendo como centro o ninho.
Essa idéia é conhecida como defendability
theory. Ela mostra que a visão de que os animais não-humanos são dotados de
instintos fixos e imutáveis, como se fossem máquinas rústicas, é extremamente
grosseira. É importante ressaltar que essas variações em como a espécie lida
com o território não são fixas, mas flexíveis, ativadas conforme as
necessidades que o ambiente provoca no animal.
Propriedade de acordo
com filósofos
As teorias tradicionais sobre as propriedades em nossa
espécie vieram de filósofos que eram mais antropólogos de gabinete (como são
chamados os estudiosos que bolam teorias sobre o comportamento humano mas tudo
de dentro do conforto de seus escritórios e em cima de suas poltronas, sem
fazer uma pesquisa de campo, recorrendo somente à livros) do que estudiosos
realmente gabaritados que buscassem evidências coletadas em campo. Rousseau
(1762), Locke (1689), Hobbes (1651), Bentham (1802) e outros, achavam que para
que a noção de propriedade se desenvolvesse, era preciso que existisse
comunicação verbal, trabalho produtivo, instituições legais, autoridades e
outras complexas estruturas sociais. Em um excelente estudo, DeScioli (2011)
tentou verificar empiricamente se, ao contrário do que supunham os filósofos, o
nascimento das propriedades humanas não estivesse relacionado, na verdade, com
características humanas mais básicas, como o surgimento de conflitos. Além
disso, foi cogitada a idéia de não serem necessárias tantas estruturas sociais
complexas como as descritas acima.
Testando os
Precursores da Territorialidade e Propriedade em Humano
Para testar essas hipóteses, o pesquisador utilizou um jogo
virtual criado especialmente para a pesquisa. Cada participante jogava com um
avatar, que poderia ser grande ou pequeno (as diferenças de tamanho eram bastante óbvias). O ambiente
consistia num cenário onde o avatar podia se deslocar à vontade. Foram
selecionados 120 universitários para participar do experimento no laboratório
de Ciência Econômica da Universidade de Chapman, e as jogadas eram divididas em
rodadas em que 10 participantes jogavam por vez. O objetivo do jogo era ganhar
o máximo de alimento possível, que depois do término do experimento seriam
convertidos em dinheiro para os participantes da pesquisa. Mas a tarefa não era
tão fácil quanto parece. Os avatares transitavam pelo mapa à procura do
alimento (berries) que se encontrava
em arbustos espalhados pelo local. Ao entrar nos tais arbustos para pegar o
alimento, caso lá já estivesse presente outro avatar, algumas opções eram dadas
para o avatar intruso: sorrir, brigar pelo recurso ou deixar a moita. Existia uma
pontuação referente a cada escolha, de forma que o sorriso era neutro (sem
pontos), a opção de deixar o local também, e a opção por conflito resultava em
um dano certo para os dois, tanto para o vencedor quanto para o perdedor da
briga. Mas, em compensação, o vencedor ficaria com a fonte de alimento só para
ele. Se o jogador encontrasse um arbusto sem nenhum avatar ainda dentro, pontos
eram ganhados. Em síntese, esse é o mecanismo central por trás do jogo. Mas
existem algumas importantes variáveis introduzidas pelos experimentadores.
Os arbustos do jogo podiam ser de dois tipos: marrom ou verde. O marrom fornecia menos quantidade de alimento em relação ao
verde. Sendo assim, existiam dois modos de organização dos arbustos: uniforme e desigual. Na primeira, só existia ou um tipo de arbusto ou outro,
logo, todos eles podiam oferecer a mesma quantidade de recursos. Na segunda
modalidade, a quantidade de arbustos era dividida entre os dois, isto é, havia
a desigualdade de recursos fornecidos pelos arbustos, uns oferiam mais, outros
menos. Os experimentadores, que observavam o experimento apesar de os
participantes não saberem disso, controlavam a quantidade de arbustos
disponíveis no modo desigual do jogo, para evitar que ao encontrar um arbusto
verde, mais rentável, o participante permanecesse nele indefinidamente; assim,
modificando-o de verde para marrom, o pesquisador fazia o avatar cogitar a
idéia de permanecer ali numa atividade menos rentável ou então burcar por uma
melhor opção.
Também havia um controle sobre o tamanho dos avatares. Um
dos tipos de avatares possuía altura bem pronunciada em relação ao outro, mais
baixo. Essa variável influenciava de maneira bem marcante as interações entre o
avatar residente (que já estava no arbusto antes de outro avatar chegar) e o
recém-chegado ou intruso.
Resultados
Efeitos da Variação do
Ambiente
- Na situação de variação desigual do ambiente, os avatares
passaram mais tempo nas moitas e nas interações sociais do que na condição
uniforme.
- Tanto na condição uniforme quanto na desigual foi gasto
mais tempo circulando pelo ambiente do que dentro dos arbustos, mas na condição
desigual o tempo gasto dentro dos arbustos era maior comparando com o outro.
- Na condição uniforme, o número de interações que resultavam em conflitos foi consideravelmente
inferior à condição desigual de recursos, além de no primeiro, nenhuma morte
ter ocorrido, ao contrário do segundo. Consequentemente, mais gastos com brigas ocorreram no modo de ambiente desigual do
que no uniforme.
- A opção de “sorrir”
para o outro avatar foi selecionada mais
vezes na condição desigual.
Efeitos da Assimetria
no Tamanho dos Avatares
Essa seção de análise teve como objetivo verificar se o
tamanho dos avatares estava relacionado com o número de vitórias (entendidas
como quando dois avatares estavam num arbusto e um deles saía e o outro
permanecia; o que ficava era o vencedor).
Veja o gráfico abaixo:
Retirado de DeScioli (2011) |
As Implicações para a
Noção de Propriedade
Como já foi dito, por muito tempo os filósofos disseram (e
hoje historiadores e outros, repetem) que para que o modelo atual de
propriedade fosse criado, muitas outras estruturas sociais teriam que ter
existido. O experimento descrito mostrou que é preciso bem menos do que uma
linguagem verbal, autoridade legal e outras complexidades para que a noção de
propriedade nasça.
Experimentos em outros animais mostraram que essa noção pode
surgir perante situações onde não existe quantidade uniforme de recursos
distribuídos, disputa por fêmeas e presença de predadores (Brown, 1964; Kokko,
Lopez-Sepulcre & Morrell, 2006; Maher & Lott, 2000; Maynard Smith,
1982; Parker, 1974). O experimento realizado por DeScioli (2011) sugere que esse
também é o caso dos humanos. Basta dar uma olhada (na seção acima) nas
diferenças existentes nos ambientes em que os recursos eram distribuídos
igualmente e nos outros, onde os recursos eram disponibilizados de forma
irregular pelo território. A distribuição uniforme fez os avatares ficarem mais
pacíficos em detrimento da outra condição (desigual), em que houve aumento do
número de conflitos e até a ocorrência de uma morte. Ou seja, no ambiente onde
havia a necessidade de disputa por alimento, era preciso administrar a
agressividade para proteger as fontes de alimentos e também para tentar tomar
fontes já dominadas por outros avatares. E isso toca num importante ponto, que
nos leva mais diretamente à questão da propriedade.
No item mostrando os resultados das assimetrias no tamanho
dos avatares, vemos que os avatares de maior tamanho levavam considerável
vantagem sobre os menores. Mas um interessante fenômeno adicional foi observado
(observe o gráfico na seção de assimetria
dos avatares). A vitória nas disputas por arbustos não era determinada
somente pelo tamanho do avatar, mas pela relação entre tamanho e intruso X residente. Explico. É o
chamado Human Residence Behavior, isto
é, o fato de um avatar ter chegado primeiro a uma moita fazia com que ele
lutasse pela posse do local de forma muito mais atia do que os avatares que
entravam no lugar, os intrusos. O gráfico mostra que quando dois avatares pequenos, um intruso e um
residente, brigavam, o residente levava vantagem e vencia expressivamente mais.
No caso de um avatar grande e intruso
contra um pequeno e residente, o residente, surpreendentemente, levava
vantagem, apesar de o experimento não ter encontrado um número de vitórias
estatisticamente relevante; mas já é algo digno de nota, pois o mais lógico
seria que o maior avatar vencesse. E os resultados prosseguem mostrando que a
vantagem na maioria das vezes está com aquele avatar que já estava com a
“posse” do arbusto.
Esses estudos mostram que a cognição humana e não-humana
dispõe de mecanismos adaptativos, isto é, não uma questão de instintos fixos,
mas de capacidades fluidas que se encaixam da melhor maneira possível às
necessidades ambientais. Isso mostra que falar de uma natureza humana não
significa falar de comportamentos fixos e robóticos, mas de tendências de agir
de determinada forma dependendo do ambiente em que nos encontramos, das
relações existentes nesse ambiente. Não podemos esquecer que, afinal, é essa
característica inerente à natureza humana, de se adaptar aos mais diversos
locais é que fez com que nos tornássemos a espécie dominante no planeta. E isto
influencia diretamente o modo como um determinado grupo humano concebe a
“propriedade”. Isto é, uma noção que não é smplesmente construída socialmente,
de maneira aleatória, contingencial, mas na forma de uma interação entre a
cognição humana, cujo modelo básico (defaut) foi moldado pela seleção natural,
e a disposição de recursos ao seu redor.
Referências
- Bentham, J. (1802). The theory of
legislation. In C. K. Ogden
(Ed.), London:
Kegan, Trench,
Trubner & Co.
- Brown, J. L. (1964). The evolution of
diversity in avian territorial systems.
Wilson
Bulletin, 76, 160–169.
- DeScioli, P., Bart J. Wilson, (2011), The
territorial foundations of human property, Evolution and Human Behavior 32
(2011) 297–304.
- Hobbes, T. (1651). Leviathan.
Retrieved from Project Gutenberg. http://
- Kokko, H., Lopez-Sepulcre, A., &
Morrell, L. J. (2006). From hawks and
doves to self-consistent games of
territorial behavior. The American
Naturalist, 167, 901–912.
- Locke, J. (1689). Two
treatises of government. Retrieved from Project
- Maher, C. R., & Lott, D. F.
(2000). A review of ecological determinants of
territoriality within vertebrate
species. American
Midland Naturalist,
143, 1–29.
- Maynard Smith, J. (1982). Evolution and the
theory of games. Cambridge:
Cambridge University Press.
- Rousseau, J. J. (1762). The
social contract. Retrieved from the Constitution Society. http://www.constitution.org/jjr/socon.txt.
- Parker, G. A. (1974). Assessment
strategy and the evolution of fighting
behavior. Journal of Theoretical Biology, 47, 223–243.