“A mitologia pode, num
real sentido, ser definida
como a religião de
outro povo. E a religião pode,
num certo sentido, ser
entendida como
uma incompreensão
popular da mitologia.”
Isto és Tu – Joseph Campbell
Sempre fui
ligado às religiões, apesar de não praticar nenhuma. Talvez isso seja um misto
de interesse pessoal pelo Mistério
juntamente com as influências da minha família, que sempre foi plural em suas
crenças, me fazendo ir em igrejas, centros de religiões afrobrasileiras,
centros kardecistas e etc. Ou, quem sabe, esse contexto em si foi o que
produziu em mim o desejo de conhecer mais sobre essas coisas.
O fato é que hoje vejo que apesar de na minha infância ter
sempre visto a mim mesmo como religioso – ou pelo menos crente em Deus – eu não
era nada disso. Eu acreditava em nada mais que no Deus das lacunas. Sempre gostei muito de ciência, de forma que
quando não podia explicar algo por ela, acabava apelando para a religião,
milagres, influências de Deus, santos, anjos.
Foi já no Ensino Médio ou final do Fundamental, que comecei
a ficar um tanto mais exigente com relação ao que eu achava ou deixava de achar
dessa relação entre ciência e religião. Aos poucos, a idéia de ter alguém
sentado num trono, com uma inteligência dita superior mas ao mesmo tempo tão
humana, num lugar longícuo, nos observando, medindo nossos atos e intervindo
vez ou outra começou a me parecer artificial demais.
Foi então que, por influência de bons amigos que sempre
foram católicos, resolvi ceder e ir para a Crisma. Segundo o que eles me
disseram, seria uma oportunidade para que eu tirasse minhas dúvidas e fizesse
meus questionamentos. O resultado? Não sei bem como avaliar, mas, resumindo,
não aconteceu bem o que esperava. A Crisma não se revelou um encontro para
discussões amigáveis sobre religião, mas sim sessões em que os alunos aprendiam
o básico sobre as crenças que os católicos deveriam ter. Tudo isso sem questionar.
Acabou que eu passei a ser considerado o chato da turma, por
sempre vir com um questionamento inconveniente, enquanto a maioria ali – se não
todos – estava só interessada em crer desesperadamente em algo. É certo que
alguns me achavam engraçado também e, se por um lado me aborreci bastante, por
outro, fiz preciosas amizades. Meu saldo geral é que é melhor não ter um.
Classificar as situações como positivas ou negativas acaba empobrecendo nossa
experiência. Talvez sem esse período eu não seria quem sou hoje, então está
bom.
O fato é que, paradoxalmente, foram esses meses que acabaram
por me tornar um ateu convicto e antirreligioso por bastante tempo. A religião,
como eu passei a vê-la, era nada mais do que um amigo imaginário que as pessoas
criavam para aliviarem o sofrimento e a dor de estarem sozinhas no mundo. Eu
discutia e tentava sempre que podia argumentar e mostrar o quanto uma vida
imbuída de razão e coragem para enfrentar a vida como é, era algo melhor.
Durante todo esse tempo, eu li muitos livros sobre ciência e
religião. Até que deparei com Joseph Campbell. Primeiro, com suas entrevistas
para Bill Moyers, em O Poder do Mito, depois, comprando livros dele. Com as
informações que adquiri nas obras do mitólogo, comecei a ver que as pessoas se
dividiam em dois grupos no que tange à concepção sobre religião: a primeira metade lê a Bíblia, por
exemplo, e acha que tudo que está escrito ali realmente aconteceu, incluindo um
homem andar sobre as águas e ter tido um alagamento global e uma arca com todas
as espécies dentro; a outra parte,
achava que tudo isso era mentira pura.
Descobri que a
religião deve ser tratada como metáfora. Os relatos dos textos sagrados,
das lendas, das mitologias, são imagens construídas num determinado tempo e
espaço, que visam expressar a vida humana interior. E o que essas metáforas significam
é expressado desde sempre por todas as tradições, mas vestido com roupagens
adequadas a cada tempo e lugar. São verdades psicológicas acima de tudo, não fatos literais.
“Assim, o nascimento virginal, como o leitor chegará a saber, não se
refere à condição biológica de Maria, a mãe de Jesus, mas a um renascimento do
espírito que todos podem experimentar. A terra prometida não se refere a uma
localização geográfica, mas ao território do coração humano, no qual qualquer
um pode penetrar. No entanto, feixes de condenações têm sido emitidos e guerras
intermináveis têm sido travadas em torno de aplicações errôneas elementares
dessas próprias metáforas, que deveriam nos capacitar a cruzar as fronteiras do
tempo e do espaço e não a permanecer Ilustrados e para sempre postados no palco
empoeirado do seu período histórico concreto. As denotações são singulares,
limitadas pelo tempo e não-espirituais; as conotações da metáfora religiosa são
ricas, atemporais e se referem não a um outro alguém no mundo exterior de uma
outra era, mas a nós e a nossa experiência espiritual interior de exatamente
agora.”
Campbell e Moyers em entrevista |
Essa citação acima é do
prefácio de Isto és Tu, escrito por
Campbell. Nesse belo livro há também o relato de uma das muitas entrevistas que
o autor deu no lançamento de um de seus livros. Estava ele numa rádio, onde na
mesa havia um advogado, além de outras pessoas, que se auto-intitulou “muito
duro”.
A conversa, claro, era
sobre mitologia, e havia sido perguntado ao autor o que era o mito. Claro que
Joseph respondeu de forma empolgada e apaixonada, como sempre. E sua resposta
incluía dizer que tratava-se de metáforas. O advogado, após algumas pausas,
afirmou categórico: A mitologia e a religião são mentiras!
Joseph retrucou dizendo
que não, eram metáforas, não mentiras. E o assunto ficou nisso durante um
tempo, quando, finalmente, ele perguntou ao advogado o que era uma metáfora. O
homem deu um exemplo, dizendo que um sujeito corria tão rápido que parecia um
cervo. “Ele corre como um cervo”, aí está a metáfora, diria ele. Mas isso não é
uma metáfora, é uma comparação! Metafórico seria dizer que o homem é um cervo, dissera Joseph Campbell.
Nesse sentido, portanto,
o que posso dizer sobre meu ateísmo, já que concordo plenamente com a opinião
acima? Acho que, hoje, estou em condições de dizer que sou ateu,
indubitavelmente, quanto a um deus ou deuses antropomórficos, que estão
sentados num trono dentro de um reino distante, que regula nossas ações e faz
milagres.
O objetivo da religião e
da mitologia, digamos assim, sempre foi mediar uma experiência entre o homem e
o Mistério, a experiência que nos coloca em contato com a não-dualidade, com
tudo aquilo que não pode ser dito ou pensado com palavras.
Acho que, com efeito, as
mitologias e religiões falam de imagens, metáforas de algo mais profundo, mas
que está em nós, não no mundo exterior.
E quando falamos dessas tais metáforas, Deus, deus e deuses estão aí
icncluídos. Algo que, como já disse, diz respeito à nossa psicologia mais do
que qualquer coisa, provavelmente. A metáfora, assim, nos oferece um caminho
não para entender intelectualmente o mundo, a natureza, mas para entendermos
como podemos transitar por esse mundo. Se todos os religiosos entendessem isso,
aí verdadeiramente não haveria conflito entre religião e ciência.