Uma das edições da série de 5 revistas chamada 5 Ronin, que aborda uma versão
alternativa da história do Hulk, me fez pensar sobre algo bem insuspeitável:
sobre a hipocrisia religiosa. Não, dessa vez não estou me propondo a criticar
as religiões, mas a criticar alguns críticos delas. É comum ouvirmos críticas
como “Ah ele errou, não é tão caridoso assim, hipócrita!” à respeito de
religiosos. No caso do budismo, que é uma religião que tem ênfase no controle
da mentem é comum ouvir críticas parecidas quando um praticante perde o
controle por alguma razão. E essa revista sobre o Hulk, que se passa num tempo
alternativo, no Japão feudal, me fez pensar que talvez esse tipo de falha seja
um motivo mais do que suficiente para a prática religiosa, ou em outras palavras,
um processo natural em direção ao cumprimento de determinada meta.
O Hulk em nós mesmos
Na HQ do Hulk a qual me referi, o personagem recebe uma nova
roupagem. Tudo se passa no Japão feudal e Bruce é um monge zen que vive
tranquilamente numa montanha, cultivando seu próprio alimento num jardim,
estudando e meditando. A história começa quando dois camponeses vão até o monge
e pedem que ele ajude a proteger as terras de um certo grupo de homens, que
está sendo ameaçada por um grupo de samurais impiedosos. Nesse momento, ficamos
sabendo que não trata-se apenas de um monge, mas de um ex-guerreiro. Por isso,
os camponeses pedem que ele retorne a seu antigo estilo de vida para ajudá-los.
Mas Bruce (o monge, que não tem exatamente esse nome na história) recusa.
A história segue e, de acordo com certas motivações que são
despertadas no monge, ele acaba aceitando ajudar os combalidos camponeses. E o
que todos vêem, em certa altura, é um homem feroz e descontrolado. A isso,
soma-se o leve descontrole que ele manifesta antes da batalha, quando os homens
estão indo até o seu retiro querendo arrastá-lo para o conflito.
Será mesmo hipocrisia?
Essa história me chamou a atenção porque essa é uma situação
que vemos se desenrolar muitas vezes no cotidiano. Um dia desses, num grupo de
discussão sobre budismo do qual participo no facebook, um dos membros postou
dizendo que acabou se irritando e descontrolando diante de uma pessoa, e ela
disse algo como: “Ah, vc não é budista? Deveria ser uma pessoa mais controlada.
Você não passa de um hipócrita.”
Será mesmo que esse sujeito estava certo ao chamar o
praticante de hipócrita? Eu já pensei assim, mas acho que hoje já perdi boa
parte do conteúdo sentimental que eu tinha ao criticar religiosos e religião, e
isso me conferiu CERTA imparcialidade no julgamento de algumas coisas. Nesse
caso, o crítico está certo no sentido de que o budismo realmente é uma espécie
de pragmatismo dialético psicológico em que visa-se o controle da mente acima
de tudo. A partir daí, mudanças mais profundas virão. E com isso atingido,
obtem-se serenidade.
Então, é até coerente esperar de um praticante budista, que
se tenha a tal serenidade. Porém, pensando mais profundamente – o que não é
difícil...tente – podemos perceber que um dos tipos de pessoa que procurará o
budismo é exatamente a que tem problemas com o controle da mente num nível mais
pronunciado. Na prática budista, ela buscará tomar as rédeas de sua mente
inquieta e impulsiva. Mas, naturalmente, não vai ser no momento do início da
prática que, num passe de mágica, o adepto se tornará um monge!
É como uma terapia: não é no primeiro passo que se der para
dentro do consultório que a pessoa terá todas as suas questões resolvidas. É
uma questão de aprendizado, de prática, de perseverança. É como uma arte
marcial também (posso dizer com propriedade, pois pratico aikido): não com um
minuto de contato dos pés com o tatame que o praticante vai ter a perícia do
Steven Seagal ou Jackie Chan.
E digo isso não só a respeito do budismo, mas das outras
religiões também. Não deve-se esperar que um cristão seja perfeito e faça tudo
de bom que é pregado pela sua religião. Não pelo fato de que tenhamos que ser
complacentes com o erro alheio, mas porque faz parte do próprio processo de
auto-aperfeiçoamento, errar – e se corrigir.