sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

A falsa dicotomia Natureza X Cultura

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Existe um problema na área de humanas que sempre está presente, de forma implícita ou explícita: a briga entre biologia e cultura. Desde os tempos dos filósofos discutia-se sobre se as características que nos faz humanos seriam herdadas ou criadas a partir da interação com o meio social (tábula rasa). 


Hoje, o dilema tomou novos moldes por causa do aumento de conhecimento na área da biologia (neurociência, genética, psicologia, psicobiologia e etc), portanto, para os defensores da tábula rasa, tudo aquilo que faz referência à biologia é motivo de desconfiança. 


Para muitos essa é uma questão ainda pulsante no ambiente acadêmico (e político), mas existe uma gama de autores que acredita que trata-se de uma questão frívola. A verdadeira empreitada hoje é saber como os fatores ambientais e biológicos interagem entre si para formar tudo aquilo que somos no fim das contas.
 O Módulos Mentais na Psicologia Evolucionista

Nesse cenário, uma área que se destaca é a psicologia evolucionista (PE), ramo da psicologia que surge como uma junção da onda cognitivista – que lançou luz sobre os processos contidos na caixa-preta chamada mente – e da teoria da evolução de Darwin. 


Segundo a PE, a mente humana foi moldada no ambiente de adaptação evolutiva, o que significa que seu funcionamento foi moldado tendo em vista os desafios com os quais o ser humano lidava no passado. Tal conceito traz nova visão para o comportamento humano e nos faz pensar que existe não só uma continuidade evidente entre as características físicas nossas e de animais não-humanos mas também no que tange ao comportamento de ambos. 


Modularização Maciça

Uma proposta que serve de base para as primeiras hipóteses da PE para a estrutura da mente humana são as de Fodor (1983). Ele advoga a teoria computacional, em que a nossa mente seria dividida em diversos módulos, cada um especializado na resolução de determinada tarefa. Assim, existiria um para detectarmos trapaceiros no grupo, outro para detectarmos possíveis parceiros para copular, outro módulo especializado em detectar ameaças de predadores e assim por diante. Essa teoria ficou conhecida pelo apelido de “canivete suíço” (Evans & Zarate, 1999), pela sua modularização maciça. Mas uma parte interessante dessa idéia, e que nos interessa mais aqui, é o fato de os módulos serem ricos em conteúdo, apesar de serem dependentes do ambiente


Essa é uma proposta que vem explicar a complexidade e diversidade de comportamentos capazes de serem exibidos pela nossa espécie. Seria uma tarefa impossível aprender todas essas tarefas do zero; aí é que entram as chamadas predisposições. Um dos exemplos que eu mais gosto é o do reconhecimento de faces em bebês (Para ver mais sobre essa questão, leia Estereótipos: uma questão cultura. Ou não).


Estudos mostram que recém-nascidos já são capazes de reconhecer faces, pois olham por mais tempo para configurações que lembram a configuração do rosto humano, em detrimento de configurações abstratas. Vale ainda destacar que esse modelo pode ser problemático porque não prevê um processamento geral de informação, o que torna difícil explicar, por exemplo, como o ser humano é capaz de criar complexas relações entre assuntos distintos, o que demandaria certo diálogo entre os módulos processadores dessas informações, ou como podemos resolver problemas do tempo atual, sem ter um processador mais geral. 


Domínios ou módulos mais flexíveis

Mithen (1996/1998), arqueólogo, vem com uma interessante visão. Para ele, a mente teria sim um processador central, e isso poderia ser explicado pelo fato de que a evolução teria moldado nossa mente tanto na direção de uma maciça modularização quanto na de um processamento mais geral de problemas. 


Para exemplificar de forma visual, Mithen substitui a analogia do canivete suíço e sugere a da catedral, onde existiriam várias capelas com incumbências de processamento de dados mais específicos e uma nave central, onde as informações altamente especializadas das capelas poderiam se encontrar. E esse teria representado um passo essencial para tornar a nossa espécie o que ela é, ou seja, seres com uma alta capacidade para desenvolver cultura, o que so emerge com a capacidade de abstrair diversas informações, criar símbolos, o que, mais essencialmente, pode ser notado através da capacidade de elaborar ferramentas. 


A visão de Karmiloff-Smith (1995) também é bastante curiosa. Sua teoria fala não de módulos, mas de domínios – mais flexíveis que os primeiros. E esses domínios não seriam inatos no sentido de já nascermos com eles prontinhos para processar as informações; ao invés disso, nasceríamos com predisposições à especialização de determinados tipos de informações (inputs), que com esse exercício, se especializariam cada vez mais. Mas essa predisposição, ao mesmo tempo que tende a amadurecer com o uso, também impõe limites quanto aos inputs processados. 


Vemos que a visão modular da mente (ou em domínios) é praticamente consensual entre os psicólogos cognitivistas e evolucionistas, apesar de existirem pequenas variações. Percebemos também que a PE é uma área bem plural, o que faz com que se valha de informações vindas de diversas áreas, até mesmo da arqueologia, como foi visto. Nesse sentido, a neurociência tem muito a nos dizer sobre a mente humana, e um dos mais recentes achados na área parece confirmar as aspirações da mente para a PE. 


Neuroplasticidade: a relação evidente entre biologia e ambiente

No fim do século XX e início do XXI, começaram a pipocar vários estudos sugerindo esse fenômeno (Jones, 2000). Ele seria a base neurológica do efeito do ambiente sobre nossa biologia, lançando luz sobre processos comuns como a aprendizagem em vários níveis. Em outras palavras, a neuroplasticidade é a capacidade de o cérebro se moldar em face aos estímulos ambientais (Você poderá gostar de le rBudismo: o uso milenar da neuroplasticidade).


Diversos estudos, como os de LeDoux (2002), mostram que o cérebro é mais plástico do que pensávamos. Podemos destacar duas fases relacionadas a esse processo, para efeito didático: a infância e a idade adulta. Os bebês parecem nascer com certo número de tendências, como a citada anteriormente, relacionada à identificação de rostos e outros comportamentos como o choro ao nascer, o pegar, o agarrar e o mamar. 


Em termos cognitivos, seria equivalente citar os módulos mentais citados anteriormente, e a neurociência parece apontar para modelos mais flexíveis, menos maciços. Como os bebês já apresentam essas tendências, é razoável concluir que a mente modular tem suas raízes na genética, o que nos remete diretamente à seleção natural.


Ao contrário do que os críticos argumentam, a defesa dessa idéia não implica na defesa de um determinismo genético estrito. As evidências levam a concluir que a genética determina apenas uma espécie de potencialidade, o que propicia a materialidade da predisposição é a dimensão social (Oliva et al, 2009). A nível neural, as conexões entre os neurônios dependem tanto dos genes quanto da experiência (LeDoux, 2002). 


Por outro lado, características de caráter mais interpessoal – teoria da mente, consciência de si em nível simbólico, conhecimento social, linguagem – apesar de terem essa base biológica herdada, só podem se desenvolver além do nível basal com o contato social (Ramachandran, 2004). 


Conclusões

Ao longo do texto, apresentei evidências tanto da psicologia evolucionista quanto da neurociência de que não temos nenhum motivo para insistirmos numa dicotomia ambiente versus cultura. A própria evolução biológica ocorreu de forma a possibilitar essa capacidade de aprender e repassar esses conhecimentos para os outros (cultura) (Bussab et al, 1998). Talvez a insistência em tal questão ultrapassada resida numa má compreensão do que o termo inato quer dizer. Essa palavra remete a maioria das pessoas a uma situação em que a biologia determina totalmente tal característica, sem que o ambiente possa exercer qualquer influência sobre ela. Todavia, como mostrado, as características inatas aparecem como potenciais que só surgem materialmente caso haja a participação do ambiente. Mas tal mecanismo também implica que saibamos que o ser humano, ao mesmo tempo, possui limites, não tendo uma mente totalmente moldável como uma massinha de modelar (Pinker, 2002). 


 Referências

Bussab, S.. Ribeiro, F. - Biologicamente Cultural (1998). Disponível em: http://www.pet.vet.br/puc/vera%20bussab.pdf



Evans, D. & Zarate, O. (1999). Introducing evolutionary psychology. Cambridge: Icon Books.



Karmiloff-Smith, A. (1995). Beyond modularity: a developmental perspective on cognitive science. Cambridge: The MIT Press.


LeDoux, J. (2002). Synaptic Self: how our brains become who we are. New York: Penguin Books.



Mithen, S. (1998). A pré-história da mente: uma busca das origens da arte, da religião e da ciência. (L. C. B. de Oliveira, Trad.)São Paulo: Editora da UNESP. (Originalmente publicado em 1996).


Oliva, A. D.; Dias, G. P; Reis, R. A. M (2009). Plasticidade Sináptica: Natureza e Cultura Moldando o Self, Psicologia: Reflexão e Crítica, 22(1), 128-135.


Pinker, S. (2002). O instinto da linguagem: Como a mente cria a linguagem. São Paulo, SP: Martins Fontes.



Ramachandran, V. S. (2004). A brief tour of consciousness. New York: Pi Press.