Existe um
problema na área de humanas que sempre está presente, de forma implícita ou
explícita: a briga entre biologia e
cultura. Desde os tempos dos filósofos discutia-se sobre se as
características que nos faz humanos seriam herdadas ou criadas a partir da
interação com o meio social (tábula rasa).
Hoje, o
dilema tomou novos moldes por causa do aumento de conhecimento na área da
biologia (neurociência, genética, psicologia, psicobiologia e etc), portanto,
para os defensores da tábula rasa, tudo aquilo que faz referência à biologia é
motivo de desconfiança.
Para muitos
essa é uma questão ainda pulsante no ambiente acadêmico (e político), mas
existe uma gama de autores que acredita que trata-se de uma questão frívola. A
verdadeira empreitada hoje é saber como os fatores ambientais e biológicos
interagem entre si para formar tudo aquilo que somos no fim das contas.
O Módulos Mentais na Psicologia
Evolucionista
Nesse
cenário, uma área que se destaca é a psicologia evolucionista (PE),
ramo da psicologia
que surge como uma junção da onda cognitivista – que lançou luz sobre os
processos contidos na caixa-preta chamada mente – e da teoria da evolução de
Darwin.
Segundo a PE,
a mente humana foi moldada no ambiente de adaptação evolutiva, o que significa
que seu funcionamento foi moldado tendo em vista os desafios com os quais o ser
humano lidava no passado. Tal conceito traz nova visão para o comportamento
humano e nos faz pensar que existe não só uma continuidade evidente entre as
características físicas nossas e de animais não-humanos mas também no que tange
ao comportamento de ambos.
Modularização Maciça
Uma proposta
que serve de base para as primeiras hipóteses da PE para a estrutura da mente
humana são as de Fodor (1983). Ele advoga a teoria computacional, em que a nossa mente seria dividida em
diversos módulos, cada um especializado na resolução de determinada tarefa.
Assim, existiria um para detectarmos trapaceiros no grupo, outro para
detectarmos possíveis parceiros para copular, outro módulo especializado em
detectar ameaças de predadores e assim por diante. Essa teoria ficou conhecida
pelo apelido de “canivete suíço” (Evans & Zarate, 1999), pela sua
modularização maciça. Mas uma parte interessante dessa idéia, e que nos
interessa mais aqui, é o fato de os módulos serem ricos em conteúdo, apesar de serem
dependentes do ambiente.
Essa é uma
proposta que vem explicar a complexidade e diversidade de comportamentos
capazes de serem exibidos pela nossa espécie. Seria uma tarefa impossível
aprender todas essas tarefas do zero; aí é que entram as chamadas predisposições. Um dos exemplos que eu
mais gosto é o do reconhecimento de faces em bebês (Para ver mais sobre essa questão, leia Estereótipos: uma questão cultura. Ou não).
Estudos
mostram que recém-nascidos já são capazes de reconhecer faces, pois olham por
mais tempo para configurações que lembram a configuração do rosto humano, em
detrimento de configurações abstratas. Vale ainda destacar que esse modelo pode
ser problemático porque não prevê um processamento geral de informação, o que
torna difícil explicar, por exemplo, como o ser humano é capaz de criar
complexas relações entre assuntos distintos, o que demandaria certo diálogo
entre os módulos processadores dessas informações, ou como podemos resolver
problemas do tempo atual, sem ter um processador mais geral.
Domínios ou módulos mais flexíveis
Mithen
(1996/1998), arqueólogo, vem com uma interessante visão. Para ele, a mente
teria sim um processador central, e isso poderia ser explicado pelo fato de que
a evolução teria moldado nossa mente tanto na direção de uma maciça
modularização quanto na de um processamento mais geral de problemas.
Para
exemplificar de forma visual, Mithen substitui a analogia do canivete suíço e sugere a da catedral, onde existiriam várias capelas
com incumbências de processamento de dados mais específicos e uma nave central,
onde as informações altamente especializadas das capelas poderiam se encontrar.
E esse teria representado um passo essencial para tornar a nossa espécie o que
ela é, ou seja, seres com uma alta capacidade para desenvolver cultura, o que
so emerge com a capacidade de abstrair diversas informações, criar símbolos, o
que, mais essencialmente, pode ser notado através da capacidade de elaborar
ferramentas.
A visão de
Karmiloff-Smith (1995) também é bastante curiosa. Sua teoria fala não de
módulos, mas de domínios – mais flexíveis que os primeiros. E esses domínios
não seriam inatos no sentido de já nascermos com eles prontinhos para processar
as informações; ao invés disso, nasceríamos com predisposições à especialização
de determinados tipos de informações (inputs),
que com esse exercício, se especializariam cada vez mais. Mas essa
predisposição, ao mesmo tempo que tende a amadurecer com o uso, também impõe
limites quanto aos inputs
processados.
Vemos que a
visão modular da mente (ou em domínios) é praticamente consensual entre os
psicólogos cognitivistas e evolucionistas, apesar de existirem pequenas
variações. Percebemos também que a PE é uma área bem plural, o que faz com que
se valha de informações vindas de diversas áreas, até mesmo da arqueologia,
como foi visto. Nesse sentido, a neurociência
tem muito a nos dizer sobre a mente humana, e um dos mais recentes achados na
área parece confirmar as aspirações da mente para a PE.
Neuroplasticidade: a relação evidente
entre biologia e ambiente
No fim do
século XX e início do XXI, começaram a pipocar vários estudos sugerindo esse
fenômeno (Jones, 2000). Ele seria a base neurológica do efeito do ambiente
sobre nossa biologia, lançando luz sobre processos comuns como a aprendizagem
em vários níveis. Em outras palavras, a neuroplasticidade é a capacidade de o
cérebro se moldar em face aos estímulos ambientais (Você poderá gostar de le rBudismo: o uso milenar da neuroplasticidade).
Diversos
estudos, como os de LeDoux (2002), mostram que o cérebro é mais plástico do que
pensávamos. Podemos destacar duas fases relacionadas a esse processo, para
efeito didático: a infância e a idade adulta. Os bebês parecem nascer com certo
número de tendências, como a citada anteriormente, relacionada à identificação
de rostos e outros comportamentos como o choro ao nascer, o pegar, o agarrar e
o mamar.
Em termos
cognitivos, seria equivalente citar os módulos mentais citados anteriormente, e
a neurociência parece apontar para modelos mais flexíveis, menos maciços. Como
os bebês já apresentam essas tendências, é razoável concluir que a mente
modular tem suas raízes na genética, o que nos remete diretamente à seleção
natural.
Ao contrário
do que os críticos argumentam, a defesa dessa idéia não implica na defesa de um
determinismo genético estrito. As evidências levam a concluir que a genética
determina apenas uma espécie de potencialidade, o que propicia a materialidade
da predisposição é a dimensão social (Oliva et al, 2009). A nível neural, as conexões entre os neurônios
dependem tanto dos genes quanto da experiência (LeDoux, 2002).
Por outro
lado, características de caráter mais interpessoal – teoria da mente,
consciência de si em nível simbólico, conhecimento social, linguagem – apesar
de terem essa base biológica herdada, só podem se desenvolver além do nível
basal com o contato social (Ramachandran, 2004).
Conclusões
Ao longo do
texto, apresentei evidências tanto da psicologia evolucionista quanto da
neurociência de que não temos nenhum motivo para insistirmos numa dicotomia
ambiente versus cultura. A própria evolução biológica ocorreu de forma a
possibilitar essa capacidade de aprender e repassar esses conhecimentos para os
outros (cultura) (Bussab et al, 1998). Talvez a insistência em tal questão
ultrapassada resida numa má compreensão do que o termo inato quer dizer. Essa
palavra remete a maioria das pessoas a uma situação em que a biologia determina
totalmente tal característica, sem que o ambiente possa exercer qualquer
influência sobre ela. Todavia, como mostrado, as características inatas
aparecem como potenciais que só surgem materialmente caso haja a participação
do ambiente. Mas tal mecanismo também implica que saibamos que o ser humano, ao
mesmo tempo, possui limites, não tendo uma mente totalmente moldável como uma
massinha de modelar (Pinker, 2002).
Referências
Bussab, S.. Ribeiro, F. - Biologicamente Cultural (1998). Disponível em: http://www.pet.vet.br/puc/vera%20bussab.pdf
Evans, D. & Zarate, O.
(1999). Introducing evolutionary psychology. Cambridge: Icon Books.
Karmiloff-Smith, A. (1995).
Beyond modularity: a developmental perspective on cognitive science. Cambridge:
The MIT Press.
LeDoux, J. (2002). Synaptic Self:
how our brains become who we are. New York: Penguin Books.
Mithen, S. (1998). A pré-história da mente: uma busca das origens da
arte, da religião e da ciência. (L. C. B. de Oliveira, Trad.)São Paulo: Editora da UNESP. (Originalmente
publicado em 1996).
Oliva, A. D.; Dias, G. P; Reis, R. A. M (2009). Plasticidade Sináptica:
Natureza e Cultura Moldando o Self, Psicologia: Reflexão e Crítica, 22(1),
128-135.
Pinker, S. (2002). O instinto da linguagem: Como a mente cria a
linguagem. São Paulo, SP: Martins Fontes.
Ramachandran, V. S. (2004).
A brief tour of
consciousness. New
York: Pi Press.