Embora ciência e
religião pareçam sempre estar vivendo num eterno conflito, existe outro lado
dessa história, em que existe o diálogo, a curiosidade e a saudável e frutífera
troca de informações. De quebra, esse lado ainda representa um importante diálogo
entre Oriente e Ocidente. O Dalai Lama parece ser o catalisador desse tipo de
relação, mostrando – juntamente com a ciência ocidental – que a prática budista
tem mais a nos ensinar sobre a nossa própria ciência do que nós
desconfiaríamos. Mesmo sem saber, o monge budista e líder político e religioso
do Tibet colocou o dedo numa questão científica que muito em breve se tornaria
uma revolução no nosso conhecimento sobre o cérebro: a relação entre a
neuroplasticidade e o suposto poder de a mente influenciar a arquitetura
cerebral. *
Frequentemente,
o Dalai Lama deixa seus aposentos na Índia, em Dharamsala, para ir ao encontro
de cientistas políticos ao redor do mundo para conhecê-los melhor, saber mais
sobre seus trabalhos. Essa ação tem destaque principalmente em relação ao seu
acompanhamento da atividade de cientistas. Porser um monge budista, nós
tendemos a imaginar que ele não se interessasse por ciência ou mesmo que fosse em
alguma medida contra ela, já que não é raro as descobertas científicas acabarem
colocando à prova a fé. Mas ele dialoga prazerosamente com todos os cientistas
e tem muita curiosidade.
Nos
anos 90, Tenzin Gyatso – como o Dalai Lama se chama –
acompanhava uma cirurgia cerebral. Durante o processo ele perguntou aos
neurocirurgiões se a mente podia alterar o cérebro. Os médicos responderam
aquilo que era mais prudente, considerando as evidências, isto é, até onde se
sabia, a mente era apenas um reflexo da atividade eletroquímica do cérebro,
portanto, o que acontecia ali era o que estava acontecendo na mente. Essa
resposta não satisfez muito o monge budista, ele continuava tendendo a achar
que alguma espécie de “pensamento puro” poderia sim alterar a estrutura
cerebral.
![]() |
Jovens monges "brincando" com um microscópio |
Em
certo sentido, Gyatso tocou num ponto que, quando pesquisado, viria a
revolucionar nossa compreensão sobre o cérebro: a neuroplasticidade. Antes da descoberta desse fenômeno, achava-se
que nosso cérebro possuía uma quantidade de neurônios que não se alterava
nunca. Se algum fosse destruído em algum momento, já era, ia ficar com aquela
falta e todas as consequências decorrentes daí para sempre. Assim, a descoberta
da neuroplasticidade significou uma nova esperança para aqueles que sofreram
derrames ou que sofriam de qualquer outra condição com prejuízo cerebral, pois
significava que, através de exercícios e terapia, o cérebro poderia se remoldar
e reaprender aquela tarefa prejudicada. Por exemplo, alguém que parou de mover
um braço por causa de um derrame, poderia recuperar os movimentos através de
uma terapia especializada.
Os
efeitos da neuroplasticidade no aprendizado também ficaram claros.
Resumidamente, os cientistas perceberam que a aprendizagem é o processo da
neuroplasticidade por excelência. Cada coisa nova que aprendemos contribui para
modificar nosso padrão de conexões cerebrais.
Mas
o Dalai Lama estava se referindo a outro tipo de controle sobre a matéria
(cérebro). Não era algo que se conseguia através de exercícios, mas através do
puro pensamento, como ele diria.
Em
2002, a neurocientista Helen Mayberg, descobriu que pílulas placebo exerciam o
mesmo efeito sobre o cérebro (em alguns casos, claro) que os anti-depressivos.
Isso trouxe uma maior necessidade de aprimoramento dos estudos nos quais as
indústrias farmacêuticas se baseiam para criar seus medicamentos, mas também
fez a comunidade científica ficar alerta para o poder do pensamento para
interferir na atividade eletroquímica do nosso cérebro.
Esse
controle já era oferecido, de certa forma, através da terapia cognitivo-comportamental (TCC). Esse tipo de terapia age fazendo com que o
paciente aprenda a mudar sua forma de pensar, o que, consequentemente, muda seu
comportamento e seus sentimentos e emoções em relação ao problema e à vida em
geral também (Almeida & Neto, 2003).
Eletrodos p/ medir atividade cerebral |
Na
Universidade de Toronto, Dra. Mayberg e seus colegas chegaram a resultados
bastante interessantes. Eles separaram dois grupos de pacientes que sofriam dos
chamados pensamentos catastróficos – padrão de pensamento em que se pensa que
tudo vai dar errado o tempo todo, que algo terrível irá acontecer e etc -, um
dos grupos seria tratado com um medicamento anti-depressivo apenas, a
paroxetina, e o outro com TCC. Ressonâncias magnéticas eram realizadas antes do
experimento e depois, pois, assim, os pesquisadores buscavam verificar se o
cérebro dos pacientes mostrava uma modificação mensurável após o tratamento. A
hipótese era que os dois tipos de terapia, quando bem sucedida, causariam as
mesmas modificações. Mas “estávamos totalmente errados”, como disse Mayberg. A
análise pós-terapia mostrou diferenças significativas no cérebro dos dois
grupos. A TCC diminuiu consideravelmente a hiperatividade do córtex frontal – o
centro da racionalidade, lógica, análise e pensamento abstrato. Já os
antidepressivos aumentaram a atividade nessa área. E a TCC aumentou a atividade
no sistema límbico, o centro das emoções, enquanto as drogas diminuíram a
atividade ali. Esse efeito é bem compatível com o relato de alguns pacientes
que se sentem meio “dopados” quando tomam esses medicamentos; de acordo com
esses resultados, poderíamos supor que essa sensação é causada por esse efeito
letárgico sobre o centro das emoções. A terapia cognitivo-comportamental,
conclui Mayberg, realmente ensinou os pacientes a não catastrofizarem,
modificando sua arquitetura neural, enquanto que as drogas somente agiram sobre
a hiper e subativação dos sistemas cerebrais, portanto, a TCC parece ter um
resultado mais duradouro do que o tratamento farmacológico.
Outro
efeito da mente sobre o cérebro que é fugaz para um ocidental é a atenção. E
isso é verdade não só para humanos, mas para animais também. Em 1993, na
Universidade da Califórnia, pesquisadores reuniram macacos e colocaram todos
eles com um fone de ouvido tocando sons e um artefato em seus dedos, que os
mantinha presos. Um grupo era ensinado a prestar atenção nos movimentos dos
dedos e outro, a focar-se no som que saía do fone. Monitorando o cérebro desses
animais antes e depois da experiência que durou algumas semanas, foi descoberto
que o córtex correspondente à atividade atencional enfatizada apresentava um
número de conexões e um tamanho bem maior comparando com a área não afetada.
Era mais ou menos assim: o macaco que aprendeu a prestar atenção no som, em
detrimento do movimento dos dedos, apresentou no fim do experimento um
crescimento da área do córtex correspondente à audição, e a área equivalente ao
movimento dos dedos parecia não ter diferença em relação ao que foi registrado
antes do experimento.
Os
estudos sobre a neuroplasticidade não se resume às terapias, remédios e
aprendizado. O Oriente, especialmente no que se refere ao Budismo Tibetano,
está fornecendo evidências importantes sobre a validade da neuroplasticidade e,
também, sobre a eficácia da meditação como ferramenta para mudar profundamente
as pessoas, inclusive suas formas de pensar.
Oito monges budistas
que possuem uma prática de pelo menos 10000 horas de meditação foram
voluntários num experimento ao lado de um grupo de 10 voluntários que praticam
meditação há pouco tempo, tendo feito apenas algumas aulas. Foi pedido que
todos fizessem a meditação da compaixão ilimitada por todos os seres, uma
prática meditativa que, segundo os budistas, aumenta a capacidade compassiva
dos indivíduos. Para analisá-los, dezenas de eletrodos foram colocados em suas
cabeças para que fosse realizada uma eletroencefalografia.
O estudo empreendido
por Richard Davidson mostrou que, ao adentrarem nessa meditação, os voluntários
aprendizes mostraram um sutil, mas significante aumento das ondas gama no
cérebro. Nada comparado ao que ocorreu no cérebro dos monges. Nestes, as ondas
gamas surgiram intensamente e permaneceram como tal pelo resto da meditação,
até mesmo depois que eles já haviam terminado-a, seus cérebros continuaram a
mostrar essa assinatura. Richard Davidson diz que tudo que ocorre na mente possui
um correlato neural, e as ondas alfa são esse correlato em relação à meditação
da compaixão.
O monge Mattieu Ricard e o neurocientista Richard Davidson |
Depois, Davidson
utilizou ressonância magnética funcional para ver quais regiões cerebrais
ficavam ativadas durante a meditação de compaixão. Segundo os dados achados, as
áreas ativadas tinham relação com as emoções, planejamento e geração de emoções
positivas, como a felicidade. Já as regiões que parecem manter a nossa unidade,
aquilo que chamamos de “eu”, “self”, estavam muito fracamente ativadas.
Curiosamente, o cérebro dos monges mostravam grande ativação nas áreas
relacionadas ao amor materno e empatia, como a ínsula direita e caudado.
Numerosas conexões – em relação ao cérebro dos novatos – entre o córtex frontal
e as áreas ligadas às emoções foram encontradas, o que é um reflexo do
primoroso controle sobre as emoções que os monges desenvolveram, como prega um
dos objetivos da prática budista.
Enfim, mas o que isso
tudo significa? Eu vejo isso como uma evidência de que não necessariamente
religião e ciência devem ser inimigas. Tudo depende da abertura dos dois lados
um em relação ao outro, e de suas posturas ao proporcionar essa abertura
também, claro. Não adiantaria os dois lados se engajarem num diálogo e o Dalai
Lama ficar o tempo todo encarando as escrituras e crenças budistas como coisas
literais e “mais verdadeiras” que as evidências científicas. Pelo contrário,
parece que os monges tibetanos tem a ciência ocidental num altíssimo patamar e
todos ficam muito animados em conhecer um pouco dela. E essa parceria se
mostrou muito promissora, como esses experimentos aqui relatados mostram. O
estudo do cérebro dos monges ajudou a neurociência a chegar a uma série de
novos resultados e a reformular várias posições sobre a natureza do cérebro e
das emoções humanas, algumas às quais nem houve espaço para tratar aqui. E, se
depender da autoridade política e religiosa do Tibet, novos frutos ainda
surgirão.
* Essa citação pode ser altamente polêmica entre os neurocientistas, já que hoje é quase consenso que a mente é o resultado da atividade cerebral. Sendo assim, o que se quer dizer no texto não tem a ver com nenhum pressuposto de separação entre mente e corpo.
Referências