“Nenhum homem de dons elevados se agrada com algo
inferior ou medíocre. Uma visão de grande conquista o chama e o faz erguer-se.”
Sêneca – citada em The Stoic Art of Living
"O herói é o homem da submissão autoconquistada" Joseph Campbell - O Herói de Mil Faces
O ano de 2012
parece ser dos quadrinhos e de seus fãs. Na próxima semana o tão esperado The Avengers estréia, mas nos próximos
meses outros heróis nos aguardam: BatmanThe Dark Knight Rises e, ano que vem, The Man of Steel. São personagens
diferentes, com histórias diferentes e personalidades distintas, mas algo que
todos podem notar é que os heróis – ou melhor, super-heróis – sempre parecem
estar agindo motivados por ideais superiores como o bem e a justiça. Com todos
esses filmes vindo por aí, me veio à cabeça que haveria algum ou vários motivos
específicos que fizessem com que sujeitos super-poderosos resolvessem lutar por
causas morais superiores. No nosso mundo, especialmente em nossa época, está
meio difícil encararmos com naturalidade iniciativas desse tipo, já que é
frequente as notícias de corrupção na política, isto é, no meio de pessoas que
possuem determinado poder e que usam-no egoistamente. Por que deveríamos
acreditar, afinal, que alguém como o Super-Homem, por exemplo, faria o bem? Por
que o poder não o corrompeu? Ao mesmo tempo poderíamos refletir e concluir que –
como alguns de fato fazem – pessoas – mesmo fictícias – como Clark Kent, não
podem ser heróis, tão pouco super-heróis, justamente por serem super-poderosas.
Então, será que realmente existem razões para chamar essas pessoas de heróis?
Super-heróis realmente são heróis?
Dê uma olhada em qualquer dicionário no termo herói
e você encontrará algo como isto:
herói (he-rói)s. m.Nome dado pelos gregos aos grandes homens divinizados.Aquele que se distingue por seu valor ou por suas ações extraordinárias, principalmente por feitos brilhantes durante a guerra.Principal personagem de uma obra literária (poema, romance, peça de teatro etc.) ou cinematográfica.Principal personagem de uma aventura, de um acontecimento.
O primeiro significado reflete a noção
grega antiga dos heróis. Eles eram homens responsáveis por feitos
extraordinários, o que tinha a ver com habilidades também extraordinárias
herdadas de sua origem divina. Isso pode ser usado para pensar nos heróis que
são apresentados a nós no mundo de hoje. Thor é um ser divino que encontrou
aqui na Terra sua redenção, pois era egoísta e arrogante em Asgard, sua terra
natal. Desde então, ele dedica seus dias a tentar salvar a Terra, ao lado dos
outros Vingadores, das mais poderosas – e perigosas – ameaças. O Homem de Ferro (clique aqui e aqui se quiser comprar)
é um bilionário e gênio que, apesar de sua arrogância e narcisismo, tenta usar
sua armadura indestrutível em favor dos fracos e oprimidos. A mesma coisa serve
para o Homem-Aranha, que ganhou singulares habilidades ao ser picado por uma
aranha radioativa (ou geneticamente modificada, segundo versões atuais) nos últimos
anos de sua adolescência. Assim como os outros, ele resolveu ultrapassar seus
limites individuais e utilizar essas habilidades para servir a um propósito
maior, quando poderia optar em simplesmente usar seus poderes para ser popular
no colégio e conquistar garotas. Talvez o mais clássico de todos esses seja o
Super-Homem, um ser de outro planeta que foi mandado para Terra ainda bebê por
seu pai, enquanto seu planeta de origem – Krypton – era destruído. Apesar de
estarmos prestes a assistir ao fenômeno Os Vingadores, resolvi fazer uma
análise sobre o Super-Homem, por ser um dos mais conhecidos e também por ser só
um, o que manterá esse texto menor.
É
inegável que o Super-Homem seja super,
mas há aqueles que possam dizer que ele não é herói. O motivo é simples: os
heróis são aqueles capazes de “ações extraordinárias”, mas, se olharmos de
certo ângulo, quão extraordinário seria para Clark Kent salvar um banco de um
assalto se ele nem mesmo pode ser ferido por uma bala? Para ele é como tirar
doce de criança. Em outras palavras, não há nada de incrível nisso pois não há
sacrifício. Conclusão: o Homem de Aço, assim como os outros da turma dos
poderosos, não são heróis de verdade.
Outro possível aspecto contraditório é
que o termo super-herói soa
redundante. Se o herói já é capaz de agir extraordinariamente, o que um super-herói deveria ter de fazer para
ser considerado como tal? No entanto, suponho que esses problemas possam ser
respondidos se levarmos em conta outro aspecto ainda mais essencial: os valores, o que, consequentemente,
nos leva a considerar em nossa lista mais seriamente heróis sem poderess, como
Batman.
O mundo fictício dos quadrinhos nos
apresenta uma realidade onde o número de personagens super-poderosos é bem
grande – às vezes temos a impressão de que eles até ultrapassam o número de
indivíduos normais – mas nem todos são heróis. E o que distingue um do outro
são os valores. O que faz com que Kal-El escolha servir e proteger os cidadãos
da Terra se nem mesmo humano ele é e se muitas vezes os humanos até vão contra
ele, interpretando mal seus atos benevolentes? Já me fiz essa pergunta várias
vezes, inclusive com relação a outros personagens, e, dessa vez, Mark Waid, um
quadrinista que escreveu um dos capítulos do livro Super-Heróis e a Filosofia, me ajudou a visualizar uma das
respostas, enquanto Stehen Evans me inspirou com a outra. Inesperadamente,
essas respostas passam pelos tortuosos caminhos da filosofia.
Waid cita um interessante texto que
achou na internet:
Nosso medo mais profundo não é o de sermos inadequados. Nosso medo mais profundo é o de sermos poderosos além das medidas. O que mais nos assusta é a nossa luz, não a nossa escuridão. Quem sou eu para ser brilhante, bela, talentosa, fabulosa? Na verdade, quem você é para não ser tudo isso: Você é filho de Deus. Bancar o insignificante não presta um serviço ao mundo. Nada há de iluminado em se diminuir para os outros não se sentirem inseguros perto de você. Todos fomos feitos para brilhar, como brilham as crianças. Nós nascemos para manifestar a glória de Deus, que está dentro de nós. Não está só em algumas pessoas, mas em todas. E, quando deixamos nossa luz brilhar, inconscientemente damos às outras pessoas permissão para fazer o mesmo. Quando nos livramos de nosso medo, nossa presença automaticamente libera os outros. (Marianne Williamson, A Return to Love: Reflections on the Principles of a Course in Miracles, New York: Harper Collins, 1992).
Clark parece
ter achado um jeito de agir de forma condizente com essas palavras. O fato de
ele ser um alienígena de uma espécie cuja qual ele é o único representate vivo,
faz com que ele se sinta o ser mais solitário do universo. À noite, sobrevoando
Metrópolis ele olha para a imensidão do céu negro estrelado e pensa que, por
mais que ele faça algo por esse mundo, ele continua sendo um extraterrestre.
Ele não pertence a esse lugar, até quando ele tenta fazer o bem, seus poderes
fazem qualquer um notar que ele é diferente. No entanto, onde o kryptoniano
poderia encontrar motivos para se isolar e se deprimir, encontra seu antídoto,
o motivo para viver plenamente e para ser, de fato, o que ele é.
Aristóteles,
explorando os motivos mais básicos que fazem a felicidade do homem, especulou
muito sabiamente que um desses fundamentos é viver com excelência, o que é bastante compatível com o que
Williamson diz. Kal-El faz isso de
maneira sem igual, tanto é que é comparado aos escoteiros. Quando caiu na
Terra, na fazenda dos Kent, o pequeno possuía apenas duas coisas. A primeira
era uma espécie de Ipad mostrando em
imagens e no idioma de Krypton, a história de seu povo. Eles pareciam ser mais
ou menos como os terráqueos, sempre desbravando novas terras e se orgulhando de
serem o que são, apesar de parecerem bem mais sábios do que nossa espécie. E
sempre que chegavam a uma nova conquista, uma nova localidade, utilizavam uma
bandeira azul e vermelha com uma letra parecida com um “S”, para marcar a
vitória. E esse era o outro item que veio para a Terra com Clark, uma bandeira
do seu povo.
Quando o
tímido jornalista resolve usar suas habilidades especiais para o bem de todos,
ele assume uma identidade secreta e utiliza como disfarce um uniforme com as
cores e símbolo de Krypton. Ele resolve ser aquilo que ele é e mostrar para
todos, sem medo e sem hesitação. E, de certa forma, esse é o modo mais próximo e
digno que ele tem de se unir à sua verdadeira família, de honrar seus iguais
extintos e, ainda, de se sentir um deles. Kal-El não é um terráqueo e não tenta
ser um, tem orgulho de ser outro lugar e tenta mostrar isso usando essa
natureza em benefício de todos.
Entretanto,
quando não está com a cueca por cima da calça, ele é o discreto e tímido
jornalista Clark Kent, mas isso de forma alguma pode ser usado na contra-mão do
que já foi dito, como forma de dizer que ele tenta se esconder sob a forma de
um humano. Kent faz isso principalmente para manter em segurança as pessoas que
ele ama e que poderiam ser utilizadas por seus desafetos para afetar seu alter
ego, O Homem de Aço. Além disso, esse é um meio que ele encontrou de poder se
manter perto e socializar com as pessoas e ser encarado como um humano, para
enteder o que é ser um também. É como o mito do divino que se faz humano e
habita a Terra junto com os reles mortais (não estou falando só de Jesus, pois
existem vários mitos pelo mundo que seguem esse arquétipo).
Assim, acho
que podemos já considerá-lo sim um herói, de fato. Ele não possui muitas
fraquezas físicas as quais possam ser um impecilho para suas ações, mas
certamente se sacrificar em nome de outros é sempre uma atitude louvável e
digna do mais puro heroísmo.
Valores, sacrifício e disciplina
Em um mundo onde somente o indivíduo
parece importar, o hedonismo e o desejo de poder parecem ser tendências
interligadas e que são preferidas em detrimento de virtudes um dia mais
exaltadas e mais praticadas que hoje. Disciplina e valores são características
indispensáveis aos heróis – da ficção e da realidade – pois, o poder sozinho
pode nos conduzir a caminhos tortuosos para nós e para os que estão ao nosso
redor. De certa forma, antes mesmo da filosofia, a mitologia vinha mostrando
essa lição há milênios. É essa a mensagem que está implícita no mito do
Minotauro, por exemplo. O monstro com cabeça de touro e corpo de homem é uma consequência
do grande ego do rei de Creta. Minos governava sob a bênção dos deuses,
especialmente de Poseidon, com quem tinha um trato. Periodicamente, o deus
mandava um touro de beleza sem igual para que o rei o sacrificasse em homenagem à divindade. Mas Minos tinha
várias cabeças de gado e, um dia, ao ver aquele imponente touro branco como uma
nuvem, resolveu engambelar Poseidon. Ao invés de sacrificar o touro enviado,
sacrificou um de seus próprios, que era belíssimo mas não chegava à beleza do
touro divino. Feito isso, uniu o touro branco aos seus outros, certo de que
tinha passado a perna no rei dos mares. No entanto, um dia, sua esposa, a
rainha, viu a beleza do animal e, transformando-se numa vaca, acasalou com o
bicho. Dessa relação nasceu um terrível monstro, o Minotauro, que envergonhou o
rei, que pediu a Dédalo para construir um labirinto para aprisionar a criatura
ali para sempre. Esse monstro, de um ponto de vista psicológico, representa o
próprio ego de Minos. Outra história que retrata o risco do egocentrismo é a do
mito do rei Midas, que ganhou a habilidade de transformar tudo aquilo que
tocasse, em ouro. Porém, logo essa dádiva tornou-se uma maldição, pois Midas
não podia mais se alimentar nem mais tocar nas pessoas, pois odo sucumbiam ao
seu toque.
De certa forma, as revistas em
quadrinhos e seus personagens heróicos são uma continuidade da constatação
humana ao longo das eras de que o ego não é algo a ser cultivado, mas extinto,
e que um dos modos de fazer isso – e também um dos reflexos do sucesso na
tarefa – é se dedicar a servir ao próximo. Assim, mesmo numa época onde valores
como disciplina (para usar corretamente os poderes sem ser consumido por eles)
e o sacrifício são ignorados, os heróis dos quadrinhos parecem estar aí para
nos mostrar que essa sabedoria ainda existe.
Francine Porfirio · 673 semanas atrás
No entanto, quando chego ao término do seu post e vejo que viver em prol dos outros é defendido como 'anti-ego' – no sentido de descentralizar o olhar do sujeito sobre si mesmo – não consigo compreender assim. Acho que é o contrário. Ajudar os outros é ajudar a si mesmo. Ninguém é capaz de praticar a bondade se esta não lhe retribuísse com uma dose enorme de 'dever cumprido', aquele sentimento insuperável de autoaceitação. Skinner diz que não existe altruísmo. É utópico crer que fazemos algo inteiramente pelo outro. A verdade é que ajudamos pelo que o ato desperta em nós mesmos.
Nietzsche foi quem concebeu a ideia de 'super-homem'. Para ele era o 'Homem-Além-do-Homem', capaz de superar as limitações dos ideais existentes e criar outros, em uma 'sede de poder' e interesse real em viver seus próprios valores mesmo em uma sociedade niilista ou que apresenta tantas punições para tal conduta.
Ser um super-homem, para mim, é ser egoísta o suficiente para não se importar em lutar sozinho, porque sentir-se vivendo seus próprios valores é mais que suficiente. É mais do que a aprovação social ou uma vida de glória perante os homens. =)
Adorei o post. Fez-me refletir muito.
Parabéns ;)
Felipe C Novaes 57p · 673 semanas atrás
Eu acho que esse talvez seja um paradoxo em que 50% dele pelo menos seja causado por um confusão conceitual que tendemos a criar. Mas tipo, realmente faz sentido dizer que não existe essa coisa de extinguir o ego, e o que fazemos na verdade é fazer coisas em prol do próximo, coisa tal que preencherá esse nosso ego de qualquer forma. De fato, fazer o bem e se doar é algo que nos faz pessoas melhores e nos dá prazer mesmo! Eu sei como é. Evolutivamente falando, é um mecanismo de altruísmo recíproco que opera em nós: em faço o bem para o outro no sentido de esperar que esse bem seja recompensado mais tarde. Alguns etólogos e psicólogos evolucionistas argumentam que existe um outro mecanismo que opera nas espécies sociais, que não foi selecionado pela seleção natural, mas que é uma extrapolação desse mecanismo vital selecionado. E essa extrapolação seria a de, sob certas circunstâncias, termos a capacidade de fazermos o bem sem que seja exigida uma recompensa futura. E essa não seria uma capacidade restrita aos humanos. Algumas pesquisas apontam para a possibilidade de os chimpanzés terem também essa capacidade.
E sobre a parte mais conceitual, acho que essa literatura da extinção do ego aparece preponderantemente em literaturas orientais. Mas é preciso levar em conta que o que eles querem dizer com o termo traduzido como "ego" não é exatamente o que entendemos como "ego". rs No idioma tibetano e em sânscrito, por exemplo, existe uma diferença entre o ego e o eu. É impossível extinguir o "eu", mas há a possibilidade de acabar com o ego. O ego seria o impulso de agir governado pelas emoções negativas. E um dos primeiros passos para chegarmos a isso, segundo os budistas, por exemplo, seria nos conscientizarmos de que a individualidade ontológica é uma ilusão. A existência das coisas como algo individual em si não é algo real, é uma ilusão. A verdade é que todas as coisas que existem são interdependentes.
Existem esses dois pontos de vista sobre o ego e sua "extinção". Mas de uma forma ou de outra a consequência é a mesma, então, num viés mais prático, a idéia não é comprometida. rs
Mas achei super interessante analisar esse aspecto mais basal do conceito. Tenho que pensar mais sobre isso porque esse é um tremendo dilema hehehe
Valeu por me fazer refletr também!