Como eu disse numa entrevista, postada aqui mesmo no blog,
Ueshiba criou uma arte marcial especial porque conseguiu traduzir em
seus movimentos os preceitos do Zen Budismo e do Xintoísmo, ambas
religiões japonesas – apesar de, na verdade, o Zen ter surgido
primeiramente na China, nos Templos Shaolin. Por isso o aikido é uma
arte marcial que além de ser praticada, é sentida. No entanto, podemos
encontrar resquícios da filosofia dessas religiões em várias outras
tradições orientais. O Taoísmo é uma religião de origem chinesa, mas que
influenciou um pouco a construção do Zen na China, antes deste ter sido
exportado para o Japão. Assim, mesmo sendo nativa de outro país, o
Taoísmo possui lições que caem como uma luva para os praticantes do
aikido (e, claro, para todas as outras pessoas).
Não há como falar dessa religião sem falar de seu mestre fundador primeiramente. Lao Tsé – em que Lao significa jovem, criança, e Tsé significa sábio, maduro; mais ou menos o mesmo significado que o termo presbyteros, do grego, que mais tarde batizou o nome de uma das Igrejas Protestantes, a presbiteriana – foi um historiador e bibliotecário chinês que viveu no século VI a.C. Não há registros históricos sobre sua existência, mas a lenda diz que ao chegar à meia idade, Lao Tsé abandonou sua vida de funcionário do Império e virou um eremita. Daí em diante, vivendo em florestas e dormindo em cavernas, o chinês dedicou-se à contemplação da vida, do Universo. E o resultado disso não foi muito diferente das consequências do abandono da vida de príncipe do nobre pertencente à casta dos guerreiros, na Índia, Sidharta Gautama, cuja jornada de contemplação resultou num conjunto de ensinamentos, o Budismo. Lao Tsé, durante esse período de retiro espiritual também teria muito a nos falar, e foi o que acabou fazendo, mas de forma escrita. Ao passar pela fronteira ocidental da China, um dos guardas de lá pediu para que o sábio deixasse algo escrito para ele com seus ensinamentos, ou seja, com tudo o que uma vida contemplativa tinha ensinado-o sobre o Universo, o Divino, a Natureza, as relações sociais e etc. Assim surgiu o livro de maior expressão dentro do Taoísmo: o Tao Te Ching – Tao significa absoluto, o Infinito, a Essência, a Suprema Realidade; Te pode ser traduzido como caminho, diretriz, revelação; e Ching é documento, escrito, livro.
A obra é uma compilação de todos os
ensinamentos do mestre Lao em 81 poemas brevíssimos. Por que poemas?
Porque esses homens – Buda, Jesus, Lao Tsé, Krishna e outros, tendo ou
não existência histórica – tiveram uma experiência religiosa verdadeira,
e quando isso acontece é muito difícil traduzir aquilo que foi
vivenciado e aprendido na forma de termos literais, descritos e claros.
Assim, a linguagem das metáforas, da poesia e, frequentemente, de
paradoxos necessariamente acabam sendo empregadas. O próprio Buda,
diz-se, confrontou-se com esse problema: como transmitir para as pessoas
os ensinamentos que levam à Iluminação, se são conhecimentos que vão
além da dualidade a qual nós estamos acostumados e que é expressada ao
máximo na nossa própria linguagem?
A Prática do Wú Wéi
Esse é um conceito taoísta – que conheci ao ler o ótimo blog Calango Abstrato, mas que aparece mundo afora sob outras denominações. O mestre cristão Eckart e o místico muçulmano Gazzali chegaram à idéias bem parecidas. E ele fala basicamente de um modo de vida que visa a diminuição de sofrimento, conflitos, problemas em geral. Por todo o mundo oriental existe uma série de conceitos que são difíceis de serem entendidos por nós, ocidentais, e quando são entendidos, nós o achamos absurdo. Pode ser que isso aconteça com o Wú Wéi.
Esse é um conceito taoísta – que conheci ao ler o ótimo blog Calango Abstrato, mas que aparece mundo afora sob outras denominações. O mestre cristão Eckart e o místico muçulmano Gazzali chegaram à idéias bem parecidas. E ele fala basicamente de um modo de vida que visa a diminuição de sofrimento, conflitos, problemas em geral. Por todo o mundo oriental existe uma série de conceitos que são difíceis de serem entendidos por nós, ocidentais, e quando são entendidos, nós o achamos absurdo. Pode ser que isso aconteça com o Wú Wéi.
Wú Wéi |
Em
um mundo conflituoso e egoísta como o nosso, é muito comum que
encontremos conflitos em casa, no trabalho, na rua e etc. Passamos na
rua e alguém tropeçou em nós, o ônibus demorou demais para passar, o
chefe falou algo desagradável, chegamos em casa e a esposa começou com
as tradicionais “DRs” ou os filhos começaram a gritar e fazer bagunça
quando o que você queria mesmo era chegar nos aposentos do seu lar e ter
um pouco de silêncio e tranquilidade. Individualmente, todas essas
coisas podem ser pequenas, mas somando tudo isso ao longo do dia pode
ser que haja uma explosão de raiva a qualquer momento. E o pior é que
isso sempre acontece com aquilo que chamamos de “a gota d’água”, e a
pessoa que presencia nosso súbito descontrole fica sem saber o que
houve, fica magoada, o que acaba causando ainda mais sofrimento,
descontrole e culpa. Os orientais tem uma estratégia muito eficiente
contra esse tipo de situação: o Wú Wéi. Wú, em chinês, significa não, nada, nunca, vazio, como uma autoanulação, uma busca pelo vazio. Wéi significa ação, feito, serviço, gerência, governo.
Traduzindo para o bom “ocidentalês”, esse termo chinês poderia ser um equivalente a “lutar com as armas que temos”. É como se nos esforçássemos para fazer o melhor omelete possível com os ovos que temos em mãos, e não ficar lamentando que temos menos ovos do que gostaríamos. Afinal, a vida seguirá seu fluxo e não podemos fazer nada para impedir, então, em certas situações, lutar aflituosamente contra um problema cuja solução não está mais nas nossas mãos é pura perda de tempo, é pura criação de insatisfação e sofrimento. Esse tipo de “filosofia” é encontrada também no Zen Budismo, que tem uma estreita relação com a origem do aikido.
Um dos melhores exemplos para exemplificá-la, também, é o da represa. A represa serve para que? Para conter o caminho da água, assim, a força gerada pelo seu movimento é contida na represa. Se, por algum motivo, a barragem falhar, a água vai passar com toda sua potencia, destruindo tudo que está ao redor. É mais ou menos isso que acontece com a nossa raiva quando é simplesmente controlada. O mais desejável é que nós acabemos com as causas da raiva, o que vai impedir que essa emoção se aflore. Mas, quando isso não é possível, ainda não está tudo perdido, podemos redirecioná-la. Como diz Félix, no seu blog:
A solução apresentada pelo Wú Wéi é: em vez de barrar as coisas, redirecione-as. O fluxo natural delas continuará, mas sua desembocadura será em outro lugar. Se você sentir raiva, saiba que a mesma energia que manifesta a raiva é a que manifesta a paixão. Se tiver a ponto de soltar os cachorros de raiva, redirecione essa energia em forma de carinho e abraço em quem você ama. Se o impulso de defender-se for impossível, redirecione isso na escrita de um texto sobre o assunto. Se a pulsão de falar for barrada, transforme isso em outra forma de expressão (desenho, canto, trabalhos manuais). Enfim, uma energia pode vir até você, mas você pode escolher entre barrar ou redirecionar essa energia.
Um
ocidental bem típico pode estar pensando: “não gostei desse conceito
porque, no fundo, ele nos ensina que devemos assumir uma posição passiva
diante dos desafios e problemas impostos a nós. Nós temos é que
batalhar e lutar pela mudança, pela superação dos problemas.”
Está certíssimo, o problema dessa afirmação é que ela desconsidera o FATO de que nem sempre estaremos aptos a lutar contra certos problemas. Além disso, nem mesmo todos os problemas estão aí para serem confrontados. Muitas vezes ganhamos mais se ficarmos serenos. Mas isso também não significa ficar sentado, calmo, enquanto suas contas vencem, seu filho está doente. Não é nada disso. Se pensarmos bem, a maioria dos problemas com os quais nos preocupamos são ilusões criadas pelo nosso ego, pelo grude que temos com o passado e o futuro. Como o próprio Buda ensinava:
“O Segredo para viver uma vida feliz é saber que o passado e o futuro são ilusões da nossa mente, e viver o aqui e agora com compassiva e seriamente”.
Ou, nas palavras de Lao Tsé:
"Domina-se o mundo deixando as coisas seguirem seu curso. E não interferindo".
Mas e o aikido, onde entra nessa história, além do fato de que o taoísmo tem tudo a ver com as religiões que influenciaram essa arte marcial? Para quem pratica o aikido é bem simples notar que todas as técnicas pregam o tempo todo o Wú Wéi. No aikido não existe confronto de forças, o que se utiliza o tempo todo é a força do atacante contra ele mesmo. Se ele soca, você esquiva. Ao mesmo tempo, é possível aproveitar o movimento gerado pelo soco e conduzir o atacante ao solo ou imobilizá-lo, mas sem tentar anular a força gerada com mais força, com mais brutalidade. É como a história da represa, não se represa a água, o que fazemos é direcionar essa potência. O mesmo podemos fazer com a tensão e raiva.