Desde meados do século XX, a idéia de que rótulos psiquiátricos são prejudiciais para os pacientes ronda o meio médico e acadêmico. Por muito tempo, essa argumentação foi feita sem base em evidências, mas, nos anos 70 esse grupo de opositores pareceu receber uma arma e tanto. Tudo começou com uma pergunta feita por Robert Rosenhan (1973), professor de psicologia e direito: Como você se sentiria se seus amigos soubessem que você sofre de esquizofrenia paranoide? Essa questão é uma referência clara a sua opinião de que as classificações psiquiátricas estigmatizam os pacientes perante a sociedade, criando preconceito e discriminação. Como solução, Rosenhan defendia que, ao invés de, por exemplo, “depressão maior”, deveriam ser usados termos descritivos objetivos do comportamento do paciente, algo como: o paciente está profundamente triste, possui falta de apetitie, anedonia e etc.
Robert Spitzer
(1976) propôs uma abordagem diferente do problema. Sugeriu que ao invés de
perguntarmos como o paciente se sentiria se todos soubessem que ele era um
esquizofrênico paranóico, por exemplo, perguntou como se sentiria se as pessoas
soubessem que ele tinha mania de perseguição, crença de que as pessoas ao redor
querem prejudicá-lo. De acordo com sua hipótese, o que estigmatizaria as
pessoas seria não os rótulos em si, mas os comportamentos esdrúxulos aos quais
eles se refeririam. O que seria mais estigmatizador, então, seriam os sintomas,
não um simples nome atribuído ao seu conjunto.
Os pseudopacientes
Em 1973,
Rosenhan ofereceu o argumento que seria a base (e o calcanhar de Aquiles, como
você verá depois) para as críticas que viriam nos anos seguintes relacionados
ao mau uso dos diagnósticos. Rosenhan e mais 7 pessoas se apresentaram a
diversos hospitais psiquiátricos como se fossem pacientes psiquiátricos,
alegando ouvirem alucinações auditivas bizarras, como as palavras “baque”,
“oco” e “vazio”. No final das contas, os 8 pseudopacientes foram internados, em
que um deles recebeu o diagnóstico de transtorno bipolar e os outros, de
esquizofrenia. A intenção de Rosenhan era mostrar que os rótulos são
prejudiciais e fundamentam atitudes de descaso e preconceito contra os doentes.
Logo que foram internados, eles deixaram de fingir que
estavam apresentando os tais sintomas, esperando que aguém percebesse e desse
alta. Após algum tempo, todos os pseudopacientes foram classificados em sua
ficha como “em remissão”, ou seja, os sintomas tinham ou estavam desaparecendo,
e foram liberados. Rosenhan usou esses resultados para argumentar que os
rótulos psiquiátricos tinham embasado uma atitude preconceituosa para com eles,
afinal, nenhum deles foi considerado curado de suas condições, mesmo sem
apresentar mais os pseudossintomas.
Esse experimento gerou alvoroço no meio acadêmico e
jornalístico, tanto para mal quanto para bem. Os críticos dos diagnósticos
psiquiáricos bradavam a pesquisa o mais alto que podiam enquanto um grande
grupo de acadêmicos tentava mostrar que, além da pesquisa conter inúmeros erros
metodológicos e ignorar uma série de dados para compor sua conclusão, seus
resultados depunham contra o próprio Robert Rosenhan. Ora, se os
pseudopacientes tiveram seus sintomas classificados como “em remissão”, isso
significa que as expectativas da pesquisa não tinham sido atendidas, ou seja,
os médicos conseguiram sim identificar a ausência de sintomas, mesmo com a
presença das classificações anteriormente. Isso era exatamente o contrário do
que o autor da pesquisa estava tentando mostrar, segundo Sptizer (1976) alegou.
Spitzer ainda mostrou que diagnósticos de “em remissão” eram raríssimos em
instituições psiquiátricas, o que diminuía a probabilidade de se tratar de puro
acaso. Assim, o mais coerente é que os médicos dos estabelecimentos de
internação tenham cumprido muito bem seu papel, afinal, revelaram acurácia o
bastante para perceber que os “doentes falsos” tinham deixado de apresentar os
sintomas, indo contra a idéia de Rosenhan, de que os psiquiatras não saberiam
diferenciar normalidade de anormalidade.
A resistência acadêmica em aceitar evidências
Mesmo com a refutação bem sucedida da principal argumentação
dos “contra-diagnósticos”, uma série de acadêmicos e alunos em importantes
universidades continuam reproduzindo tal discurso. Por exemplo, numa discussão
sobre os possíveis perigos do diagnóstico, Allan Horwitz, sociólogo, e um
assistente social, Jerome Wakefield (2007), mencionaram a “vasta evidência”
mostrando quão prejudiciais são os diagnósticos psiquiátricos, alegando que
“leva ao estigma prejudicial” (pág. 23). O mais preocupante é que muitos livros
introdutórios à psicologia (Gorenflo & McConnel, 1991) e coletâneas de
estudos da área (Heiner, 2008; Henslin, 2003; Kowalski & Leary, 2004) citam
o estudo de maneira acrítica, como se a interpretação dada por Rosenhan fosse
absoluta. Resumindo a verborrágica oposição aos rótulos, temos a frase do
psicólogo Daniel Robinson (1997), numa palestra realizado no evento Great ideas
of psychology:
O que o estudo de Rosenhan deixa claro é que quando uma pessoa é diagnosticada como X, ela será tratada como X [...] porque o contexto estabeleceu que você é X você será X para sempre.
O mais insólito nisso tudo é que, nos anos 1970 mesmo,
Spitzer contactou Rosenhan solicitando os dados de seu estudo para que ele os
verificasse. Rosenhan concordou, porém, só entregaria os dados depois que
terminasse um livro que estava escrevendo sobre o assunto. Trinta anos se
passaram e os dados não apareceram. A mesma coisa aconteceu com uma
pesquisadora, Lauren Slater (2004), que usou os resultados da pesquisa em um
capítulo de seu livro Mente e Cérebro: dez experiências impressionantes sobre o
comportamento humano (Slater, 2004). No capítulo, a pesquisadora falava sobre o
estudo como se seus resultados tivessem tido validação geral e, também, como se
ela mesma tivesse reproduzido esse estudo, se apresentando em várias
instituições psiquiátricas com falsos sintomas. Spitzer pediu os dados de seu
registro hospitalar, assim como outros pesquisadores, e Slater enrolou e não
forneceu nenhum dado. Somente após uma crítica publicada pelo próprio Spitzer e
outros (Spitzer, Lilienfeld & Miller, 2005), Slater (2005) deu alguma
resposta. A pesquisadora disse o seguinte: “eu nunca fiz tal estudo; ele
simplesmente não existe” (pág. 743).
Para que, então, servem os diagnósticos psiquiátricos?
Em meio a essa confusão, essa seria a pergunta mais coerente
a se fazer. No livro Os 50 Maiores Mitos Populares da Psicologia, existe um
capítulo inteiro dedicado à questão:
Os diagnósticos psiquiátricos desempenham papéis indispensáveis na comunicação entre os profissionais da área, para a coordenação de atividades de pesquisa em todo o mundo, para a pretação de serviços de saúde mental, para o reembolso de tratamentos pelas companhias de seguros e para o encaminhamento dos pacientes a tratamentos mais eficazes. Com certeza, ninguém acredita que o DSM seja perfeito. Devemos fazer todos os esforços possíveis para aperfeiçoar o sistema existente de classificação psiquiátrica, contudo, atacá-lo com base na suposição não comprovada de que os diagnósticos são estigmatizantes é contraproducente. (Lilienfeld et al., 2010)
Eu não desqualifico totalmente a opinião dos críticos, mesmo
eles ignorando as evidências de que estão errados. Em geral, esse grupo é
formado por estudiosos que não se valem do método científico. Nesses casos, há
certo desprezo pela procura e pela validade de evidências, bastando as
especulações racionais. Então, se racionalmente é coerente que os rótulos sejam
prejudiciais, então eles sao prejudiciais e nenhuma evidência poderá mudar
isso. Talvez seja esse o mecanismo por trás da resistência em relação ao
diagnóstico. De qualquer forma, as pessoas deveriam se esforçar para, pelo
menos no meio acadêmico, não cair nas garras do politicamente correto, que é
uma das tendências anti-intelectuais e anti-críticas da atualidade. Uma análise
um pouco mais apurada dos fatos mostra que a criação de classificações para as
doenças mentais é algo fundamental para que especialistas do mundo todo possam
falar a mesma língua. Além disso, o meio psiquiátrico não é exatamente o
culpado pelos casos de discriminação que realmente existem por aí. A
estigmatização sempre existiu, antes e depois da invenção de nomes para os
sintomas aberrantes que pessoas ao redor do mundo sempre manifestaram. Ainda,
as classificações psiquiátricas são confidenciais, servindo para o uso somente
de paciente e psiquiatra. Sendo assim, uma pessoa só tem seu diagnóstico
espalhado por aí se ela mesma sair por aí espalhando. Assim, encerro querendo
deixar a mensagem de que temos muito menos a temer do que a polícia do PC
(politicamente correto) quer nos fazer crer.
Referências
- Gorenflo, D. W. & McDonnell, J. V. (1991). "The most frequently cited journal articles and authors in introductory psychology textbooks." Teaching of Psychology, 18, 8-12.
- Heiner, R. (2008). Deviance across cultures. NY Oxford University Press.
- Henslin, J. M. (2003). Down to earth sociology: introductory readings (12a ed.). NY: Free Press
- Horwitz, A. V. & Wakefield, J. C. (2007). The loss of sadness: how psychiatry transformed normal sorrow into depressive disorder. NY: Oxford University Press.
- Kowalski, R. M. & Leary, M. R. (2004). The interface of social and clinical psychology: key readingsin social psychology. NY: Psychology Press.
- Robinson, D. N. (1997). "Being sane in insane places." In: The great ideas of psychology (série em áudio). Chantilly, VA: The Teaching Company.
- Rosenhanm D. L. (1973). "Sane: Insane" Journal of the American Medical Association, 224, 1646-1647.
- Slater, L. (2004). Opening Skinner's box: great psychological experiments of the twentieth century. NY: W. W. Norton.
- Slater, L. (2005). "Reply to Spitzer and collegues." Journal of Nervous and Mental Disease, 193, 743-744.
- Spitzer, R. L. (1976). "More on pseudoscience in science and the case for psychiatric diagnosis. Archives of General Psychiatry, 33, 459-470.
- Spitzer, R. L., Lilienfeld, S. O. & Miller, M. B. (2005). "Rosenhan revisited: the scientific credibility of Lauren Slater's pseudopatient diagnosis study." Journal of Nervous and Mental Disease, 193, 734-739.