sexta-feira, 11 de outubro de 2013

A bolhas de realidade do Justiceiro

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“Todos os seres tem a natureza primordial, estamos na mandala primordial, tudo bem, não tem perigo nenhum. A nossa dificuldade é que, nós construímos as bolhas de realidade, não percebemos que estamos fazendo isto, penetramos em bolhas específicas, e ali dentro, temos a experiência do que é chamado Samsara.
Nesta Roda da Vida nós penetramos através dos elementos, construímos coisas artificiais, tentamos sustentar aquilo de qualquer jeito, nos identificamos com aquilo que aspiramos. Surge uma identidade que opera de forma cada vez mais hábil, ou seja, cada vez mais responsiva, cada vez menos consciente, no sentido de ter uma avaliação sobre sua própria operação.” ~Lama Padma Samten
Tem dias que eu percebo que algumas pessoas são como o Justiceiro. Frank Castle era um agente especial que teve a família brutalmente assassinada por mafiosos. O grupo buscava vingança. A partir daí, a vida de Castle passou a ser um verdadeiro inferno. Cheia de raiva, ódio, desejo, obsessão, violência e apenas um objetivo: vingar a morte de seus entes queridos aniquilando todo marginal ou super-vilão que passasse pela sua frente. E por aniquilar, não estou querendo dizer capturar e entregar de mão beijada para as autoridade, como faz Batman. Falo de apontar a escopeta e vaporizar cabeças.
Sua vida se resumiu, basicamente, ao seu trabalho, por mais mórbido que seja. Castle não chega em casa à noite e vai jogar vídeo game, ler um livro, fazer um curso de mandarim, sair pra jogar sinuca com os amigos ou curtir um filme de ação. Tudo o que ele faz é ser o Justiceiro. Não importa se ele está em casa (em seu esconderijo, na verdade), nas ruas ou numa boate. Se você o encontrasse por aí, pode acreditar que ele estaria nada mais que sendo o Justiceiro, isto é, procurando bandidos para esfarinhar sangrentamente. Ele não tem descanso dessa bolha de realidade, pois os dois são a mesma coisa.

Nós, cidadãos de fora das revistas em quadrinhos, vivemos também em nossas bolhas de realidade. Mas uma das diferenças é que elas são muitas para nós. Exercemos o papel de nossa profissão, de nossa posição dentro de uma comunidade religiosa,  no dojo onde praticamos artes marciais, na faculdade e dentro da família.

Uma pessoa que escolhe (não exatamente é uma escolha, mas uma situação que pode surgir para além da nossa vontade, como consequência de nossas ações impensadas) um desses papéis sociais para que seja único, pode estar em sérios apuros. Conheço indivíduos que parecem viver para o trabalho. No trabalho, eles só falam sobre trabalho, não dão uma pausa saudável nas atividades, desempenham-nas freneticamente (curiosamente, as únicas pausas que dão são para fumar – o que também não é exatamente dar um tempo, mas se apegar a outra coisa que exerce mais controle sobre o indivíduo do que o indivíduo sobre ela; uma troca de apegos).

Carrie Mathison, protagonista da série Homeland, é boa demais no que faz para dar atenção à irmã e aos sobrinhos; ou então, seu trabalho, por mais importante que seja, já corroeu toda sua personalidade a ponto de só sobrar a Carrie profissional, agente da CIA. 
É comum visualizar isso em funcionários que estão prestes a se aposentar. Se eles não tem mais nada o que fazer da vida (usar essas palavras é curioso, já que costumamos usar para nos referir a quem não quer trabalhar ou fazer algo produtivo, não para quem quer trabalhar compulsivamente), ficam aterrorizados frente à perspectiva de que em breve terão de ficar em casa, cuidar de suas próprias coisas, viajar e etc. Então, passam a fazer uma carga horária excessiva, querem pegar trabalho que não faz parte de suas atribuições; em suma, quer se mostrar útil de qualquer forma.

O paralelo com a vida de Frank Castle é forte. O que aconteceria com esse indivíduo perturbado, se alcançasse seu objetivo? O que seria de Frank se conseguisse fazer mingau de todos os meliantes da Terra? Dependendo de seu grau de desequilíbrio, poderia ficar numa espécie de êxtase, com a sensação intensa de dever cumprido. Ou poderia descambar para uma depressão profunda, vivendo num mundo onde não há mais nada para ele. É como com o trabalhador compulsivo que perde seu trabalho por algum motivo, seja por aposentadoria ou depressão. Só que nesse âmbito, a sensação boa do dever cumprido pode nunca chegar, pois o trabalho não estaria terminado de fato, somente outra pessoa estaria em seu lugar; e também, o papel do profissional era o único existente, se não pode mais ser o profissional, a vida não tem sentido.

Por isso é preciso que diversifiquemos a nossa vida, por mais que enfatizemos um de seus aspectos. Costumamos olhar para nossas bolhas de realidade de uma maneira crítica, como se elas fossem um estorvo, uma vida artificial. Dependendo de sua relação com elas, podem ser mesmo. Mas temos de segui las, temos de usá-las, não tem jeito. Precisamos delas para agir no mundo. E, ao mesmo tempo [e isso é perturbadoramente complicado, de tão simples], precisamos enxergar além delas.