“Todos os seres tem a natureza primordial,
estamos na mandala primordial, tudo bem, não tem perigo nenhum. A nossa
dificuldade é que, nós construímos as bolhas de realidade, não percebemos que
estamos fazendo isto, penetramos em bolhas específicas, e ali dentro, temos a
experiência do que é chamado Samsara.
Nesta Roda da Vida nós penetramos através
dos elementos, construímos coisas artificiais, tentamos sustentar aquilo de
qualquer jeito, nos identificamos com aquilo que aspiramos. Surge uma
identidade que opera de forma cada vez mais hábil, ou seja, cada vez mais
responsiva, cada vez menos consciente, no sentido de ter uma avaliação sobre
sua própria operação.” ~Lama Padma Samten
Tem dias que eu percebo que algumas pessoas são como o
Justiceiro. Frank Castle era um agente especial que teve a família brutalmente
assassinada por mafiosos. O grupo buscava vingança. A partir daí, a vida de
Castle passou a ser um verdadeiro inferno. Cheia de raiva, ódio, desejo, obsessão,
violência e apenas um objetivo: vingar a morte de seus entes queridos
aniquilando todo marginal ou super-vilão que passasse pela sua frente. E por
aniquilar, não estou querendo dizer capturar e entregar de mão beijada para as
autoridade, como faz Batman. Falo de apontar a escopeta e vaporizar cabeças.
Sua vida se resumiu, basicamente, ao seu trabalho, por mais
mórbido que seja. Castle não chega em casa à noite e vai jogar vídeo game, ler
um livro, fazer um curso de mandarim, sair pra jogar sinuca com os amigos ou
curtir um filme de ação. Tudo o que ele faz é ser o Justiceiro. Não importa se
ele está em casa (em seu esconderijo, na verdade), nas ruas ou numa boate. Se
você o encontrasse por aí, pode acreditar que ele estaria nada mais que sendo o
Justiceiro, isto é, procurando bandidos para esfarinhar sangrentamente. Ele não
tem descanso dessa bolha
de realidade, pois os dois são a mesma coisa.
Nós, cidadãos de fora das revistas em quadrinhos, vivemos
também em nossas bolhas de realidade. Mas uma das diferenças é que elas são
muitas para nós. Exercemos o papel de nossa profissão, de nossa posição dentro
de uma comunidade religiosa, no dojo
onde praticamos artes marciais, na faculdade e dentro da família.
Uma pessoa que escolhe (não exatamente é uma
escolha, mas uma situação que pode surgir para além da nossa vontade, como
consequência de nossas ações impensadas) um desses papéis sociais para que
seja único, pode estar em sérios apuros. Conheço indivíduos que parecem viver
para o trabalho. No trabalho, eles só falam sobre trabalho, não dão uma pausa
saudável nas atividades, desempenham-nas freneticamente (curiosamente, as únicas pausas que dão são para fumar – o que também
não é exatamente dar um tempo, mas se apegar a outra coisa que exerce mais
controle sobre o indivíduo do que o indivíduo sobre ela; uma troca de apegos).
É comum visualizar isso em funcionários que estão prestes a
se aposentar. Se eles não tem mais nada o que fazer da vida (usar essas palavras é curioso, já que
costumamos usar para nos referir a quem não quer trabalhar ou fazer algo
produtivo, não para quem quer trabalhar compulsivamente), ficam
aterrorizados frente à perspectiva de que em breve terão de ficar em casa,
cuidar de suas próprias coisas, viajar e etc. Então, passam a fazer uma carga
horária excessiva, querem pegar trabalho que não faz parte de suas atribuições;
em suma, quer se mostrar útil de qualquer forma.
O paralelo com a vida de Frank Castle é forte. O que
aconteceria com esse indivíduo perturbado, se alcançasse seu objetivo? O que
seria de Frank se conseguisse fazer mingau de todos os meliantes da Terra?
Dependendo de seu grau de desequilíbrio, poderia ficar numa espécie de êxtase,
com a sensação intensa de dever cumprido. Ou poderia descambar para uma
depressão profunda, vivendo num mundo onde não há mais nada para ele. É como
com o trabalhador compulsivo que perde seu trabalho por algum motivo, seja por
aposentadoria ou depressão. Só que nesse âmbito, a sensação boa do dever
cumprido pode nunca chegar, pois o trabalho não estaria terminado de fato,
somente outra pessoa estaria em seu lugar; e também, o papel do profissional
era o único existente, se não pode mais ser o profissional, a vida não tem
sentido.