Sessenta anos atrás o psiquiatra austríaco Hans Asperger escreveu sobre crianças que eram muito inteligentes,com vocabulário acima da média, mas que apresentavam uma série de comportamentos comuns em pessoas com autismo, como deficiências marcantes no relacionamento social e na habilidade de comunicação.
Tive uma experiência única ao ler Olhe Nos Meus Olhos, um livro cujo autor é portador da Síndrome de Asperger, patologia localizada no do espectro do autismo. É incrível como um livro autobiográfico pode abordar com sucesso e de forma tocante um tema delicado como a condição do autor, nos dar lições sobre superação, negócios, criatividade e ainda causar insights sobre aspectos sociais na mente até de quem não é autista.
John Elder Robison levou uma vida complicada. Na infância, seu desejo de se relacionar com crianças de sua idade, como qualquer um desejaria, teve que ser suprimido por causa de sua incapacidade de apreender aspectos sutis do conviver social. Com frequência John perdia piadas, deixava de inferir dados óbvios (para a média da população) de uma conversa normal. Inclusive, ter uma conversa “normal”, cotidiana e casual era algo que ele não conseguia fazer muito bem. No livro John conta sobre uma vez em que, no colégio, resolveu puxar assunto com uma colega de classe. Ele não sabia bem por onde começar e resolveu contar sobre suas mais novas descobertas sobre dinossauros, falando sobre o tamanho colossal do braquiossauro, que só perdia para o alossauro. A menina não demonstrou interesse e John mais uma vez se frustrava em suas investidas sociais, não entendendo o motivo de sua derrota. Ter uma conversa totalmente casual é algo especialmente difícil no caso de Aspergers porque eles costumam ver a vida de forma mais racional do que as pessoas comuns. Com o tempo, como é típico de Aspergers com um grau não muito alto, John começou a perceber certas frases, gestos e costumes que faziam parte do ritual cotidiano das pessoas e foi diminuindo bastante seus problemas; mas ele ainda era invadido por pensamentos sobre por que diabos pessoas perguntam às outras se está tudo bem sendo que quem perguntou não está minimamente interessado realmente, na maioria das vezes, se a pessoa está ou não bem e etc. Assim, de um completo maluco, John passou a ser visto aos poucos só como alguém excêntrico, como ele mesmo diz no livro.
Ele também tinha um desejo forte (talvez até uma mania, como é típico das pessoas nessa condição) de se especializar ao máximo em todos os assuntos de seu interesse o que, aliado à sua genialidade, lhe conferiu habilidades para lidar com carros e instrumentos musicais desde muito cedo. John foi, antes dos 18 anos, o técnico que fazia manutenção nas guitarras de bandas como Kiss e Pink Floyd. Apesar de desempenhar seu trabalho com extremo empenho e qualidade, essa não era exatamente a vida que ele queria. Para permanecer nessa função, era preciso acompanhar os músicos em suas turnês, o que incluía aturar hábitos que envolviam caos doméstico, drogas e álcool para todos os lados, comportamentos tais que eram abomináveis. Era hora de John partir para um emprego estável para que também tivesse uma vida estável.
Não foi difícil John arrumar um trabalho na área de engenharia elétrica numa empresa de desenvolvimento de jogos eletrônicos. A tarefa de desenvolver tais jogos e realizar a manutenção deles era tudo o que ele queria fazer, e o salário ainda era ótimo, proporcionando um emprego que ele amava e um salário compensador. Mas logo aconteceu algo que a maioria das pessoas levantaria as mãos para os céus agradecendo, mas não foi assim para John. Seu trabalho era tão elogiado que rapidamente uma promoção caiu aos seus pés. Quanto mais degraus eram subidos, mais próximo de um cargo de gestão de uma equipe de engenheiros ele estava. Imagine como deve ser para um autista, mesmo de grau leve como os Aspergers, lidar com um grupo de pessoas levando em consideração que Aspies por natureza possuem dificuldades de comunicação e outros relacionados à convivência social? Essas características conferiam um temperamento um tanto impulsivo à John, fazendo com que na maioria das vezes ele fosse sincero demais com os engenheiros, isto é, quando um trabalho estava ruim, John dizia com todas as letras, correndo o risco de criar climas tensos e até magoar a equipe. Os incômodos relacionados à gestão foram se acumulando e John trocou sua estabilidade, um salário robusto, pela demissão e seguida abertura de um negócio próprio de manutenção de porches, mercedes e outros carros europeus, em sua casa.
Quando o assunto se trata de decidir o que vale mais, fazer o que se gosta ou investir naquilo que dá mais retorno financeiro eu sempre fico em dúvida, mas tendo a aceitar a idéia de que o mais importante é fazer aquilo que nos faz felizes e não aquilo que nos dá mais dinheiro. Tudo bem que existem pessoas que conseguem conciliar as duas coisas, ter um emprego com um salário interessante e ao mesmo tempo ter uma atividade relacionada aquilo que realmente traz felicidade. Mas, voltando para a história de John Robison, ele largou seu emprego que não mais estava lhe fazendo feliz para iniciar um negócio que não tinha aparentemente nenhuma chance de prosperar. No fim das contas Robison teve que contratar uma dúzia de funcionários para ajudar na manutenção dos carros de tão grande que era a demanda. Sua paixão por máquinas e sua vontade tipicamente Asperger de saber tudo sobre seus campos de interesse fizeram com que ele virasse um gênio na área e tornasse seus serviços uma espécie de oficina mestra, onde carros com problemas não solucionados por nenhum outro mecânico eram consertados lá, em sua casa.
E, curiosamente, foi graças a essa medida que Robison conseguiu melhorar sua convivência com as pessoas. Um dos seus clientes era um um psicólogo atento que logo se tornou seu amigo. Um dia mostrou um livro e pediu que John desse uma lida pois o terapeuta tinha encontrado ali um quadro de sintomas que se enquadrava perfeitamente em seu jeito de ser: a Síndrome de Asperger. Leia algumas das características listadas:
Comprometimento qualitativo na interação social, manifestado por pelo menos dois dos seguintes aspectos:Marcada e acentuada diminuição na prática dos comportamentos sociais e suas variantes, tais como: a fixação do contato visual, expressão facial, posturas corporais e ajustes gestuais às interações sociais.[...]Falhas e deficiências tanto em desenvolver como em progredir nos relacionamentos que sejam mais apropriados o desenvolvente, para estabelecera sua evolução pessoal.[...]Carência de espontaneidade na busca e encontrodo divertimento prazeroso, nos interesses ou realizações com outras pessoas. Por exemplo, como na falha em exibir, em trazer ou pontuardeterminados objetos que sejam do interesse das pessoas ao seu redor.[...]Falha na recirprocidade social ou emocional.
A partir desse momento a visão de mundo e de si mesmo mudou drasticamente para Robison. Ele aprendeu aos poucos a amenizar suas características que causariam estranheza em ambientes comuns e pôde até mesmo melhorar sua convivência com a esposa e filho (também portador de Asperger, apesar de ter um grau menos elevado). John pôde entender o porquê das manias incomuns que ele tinha, como se especializar freneticamente em alguns assuntos, chamar as pessoas por apelidos estranhos, não conseguir olhar nos olhos dos outros e etc.
Essa história, além de mostrar uma história curiosa sobre um homem vitorioso, mostra o quanto os médicos ainda devem se reciclar para indicar corretamente o caso de um paciente. Também mostra que as pessoas em geral devem ser mais compreensivas com relação a pessoas que se comportam de maneira pouco usual, pois, no caso da síndrome de Asperger, por exemplo, a aceitação e acolhimento são requisitos fundamentais para uma maior adaptação. John foi a vários especialistas e nenhum chegou nem perto de relacionar seu comportamento com o autismo, apesar de a síndrome de Asperger não ter ainda sido incluída no DSM (manual de psicopatologias dos psiquiatras); depressão era uma das mais constantes respostas. E é bom que fiquemos de olhos abertos pois a síndrome é surpreendentemente comum: um relatório de fevereiro de 2007 do Center for Desease Control and Prevention constatou que uma pessoa em 150 tem Asperger ou algum outro transtorno do espectro autista. Isso significa quase 2 milhões de pessoas só nos EUA. E vale lembrar que essa síndrome é uma manira de ser, não uma doença; sendo assim, não existe cura, e nem é preciso uma.
Fontes / Saiba Mais