Bart Ehrman é um dos maiores estudiosos do cristianismo primitivo sendo ph.D. em teologia pela Universidade de Princeton e professor de estudos religiosos na Universidade da Carolina do Norte, EUA. Acabei de ler Quem Foi Jesus? Quem Não Foi Jesus? e estou simplesmente estupefato com todo o conhecimento que esse livro de poucas páginas traz. E o mais assustador e ao mesmo tempo interessante é que as informações que Ehrman traz sobre Jesus, de maneira nenhuma são teorias conspiratórias, fatos ainda não consensuais...pelo contrário, ele nos atualiza com relação a um conteúdo já extremamente “manjado” pela comunidade de teólogos e outros estudiosos da religião cristã.
Uma das primeiras coisas que se aprende num curso de teologia (como diz Bart Ehrman, no caso de seu seminário nos EUA) é o tipo de abordagem com a qual será feita a análise dos textos bíblicos. Ehrman fala de dois tipos. A devocional é aquela que podemos resumir como a mais usada pelos religiosos, isto é, é uma leitura que se preocupa em verificar o que a Bíblia diz sobre como devemos agir (moralidade, por exemplo), qual a natureza de Deus, Jesus; qual o papel de cada indivíduo no mundo; e acima de tudo, no que se deve crer. É uma abordagem que serve à fé. O outro tipo é a histórico-crítica. Para quem deseja chegar aos fatos históricos por trás da Bíblia e de qualquer tipo de texto antigo, essa é a abordagem usada. O interessante dessa abordagem, e um dos fatores que a difere da devocional, é que ela nos possibilita enxergar diversos pontos divergentes internamente na Bíblia.
“Quem foram os verdadeiros autores da Bíblia? É possível (sim!) que alguns dos autores de certos livros bíblicos na verdade não fossem ou tenham sido quem alegavam ser – por exemplo, que 1 Timóteo na verdade não tenha sido escrito por Paulo, ou que o Gênesis não tenha sido escrito por Moisés? Em que época esses autores viveram? Em que circunstâncias escreveram? Que questões estavam tentando abordar em seu próprio tempo? Como eles foram afetados pelas suposições culturais e históricas de sua época? Que fontes utilizaram? De quando são tais fontes?É possível que os pontos de vista desses materiais diferissem uns dos outros? É possível que os livros da Bíblia, baseados em uma série de fontes, tenham contradições internas? Que haja diferenças inconciliáveis entre eles? E é possível que o significado original dos livros em seu contexto original não seja aquele em que se acredita hoje? Que nossas interpretações das Escrituras impliquem descontextualizar suas palavras, distorcendo, desse modo, sua mensagem?” (Ehrman, pág. 19/20)
Essas e outras perguntas podem ser feitas pelos teólogos e muitas respostas já foram encontradas. Eu poderia escrever vários posts sobre as diferenças entre um livro e outro na Bíblia! Para ilustrar bem a situação serei bem breve sobre esse caso (pelo menos nesse post). Com certeza todo mundo, até eu que sou ateu, já viu algum filme sobre Jesus. Esses filmes, ao contrário do que pode parecer, não constituem uma narrativa segura do que está na Bíblia pelo simples fato de eles misturarem todos os evangelhos em um só. Essa mentalidade é oposta à chamada leitura horizontal, que visa a leitura separada de cada livro, sem querer criar uma história que seja uma mistura de todos os evangelhos. A leitura horinzontal é compatível com o contexto histórico em que os evangelhos ( e outros livros) foram escritos, isto é, cada livro foi escrito por autores que tinham como intenção contar uma história completa porque, afinal, eles não tinham como saber que séculos depois seus escritos seriam reunidos em um único mega livro, a Bíblia. A Bíblia dispõe todos esses textos e nos dá a impressão de que todos eles foram feitos para estarem nesse livro, mas nada pode ser mais enganoso. Pois então, voltando às abordagens fílmicas que costumam juntar todos os evangelhos, criando uma história diferente da que cada um deles nos conta. Nessas histórias, e até no senso comum, Jesus é visto como filho de Deus, nascido de uma virgem. Mas a verdade é que o único evangelho em que Jesus se identifica como filho de Deus é o de João. Lá, João (ou seja lá quem foi o verdadeiro autor), nos conta uma história que resumidamente diz que Jesus já existia antes de seu nascimento porque ele era o Verbo, estando com Deus desde o início. Nos outros evangelhos, nada é dito sobre sua vida antes do início de seu ministério ou se diz, nada é falado sobre sua divindade. E quanto ao nascimento de uma vigem? Os Evangelhos que falam sobre isso são o de Mateus e Lucas. Só que existe um problema aí. Lendo Mateus percebemos que sua maior preocupação é mostrar que a vida de Jesus é a consolidação das profecias do Antigo Testamento, especificamente as de Isaías. Então, por que Jesus tinha que nascer de uma virgem? Para cumprir o que Isaías fala em 7:14 :
A virgem conceberá e dará à luz um filho e o chamarão com o nome de Emanuel (Mateus 1:23, citando Isaías 7:14)
Bart Ehrman |
Na Bíblia hebraica, linguagem em que o Antigo Testamento foi escrito originalmente, o termo usado por Isaías é alma, que significa jovem nessa língua, é traduzida para as cópias gregas posteriores como parthenos, que significa virgem em grego. E já que Mateus utiliza a forma grega do A. Testamento, provavelmente esse evangelho foi escrito posteriormente também, numa época em que a pregação cristã já tinha alcançado a Grécia, algumas décadas após a morte de Jesus. Antes que alguém fale, digo desde já que o capítulo 7 de Isaías não faz nenhuma referência à Messias porque ele dá a entender que o tal acontecimento, da jovem dando à luz, se daria ainda em sua época. E outra ressalva importante é a de que todos os evangelhos se referem à Jesus como Filho de Deus, mas o problema é que naquela época, todos eram chamados de Filhos de Deus, até mesmo Israel. Mas no evangelho de João Jesus é indicado não no sentido usual, mas como o Verbo de Deus.
Esses e outros fatos estranhos são ensinados nas faculdades de teologia por todo mundo, mas será por que padres e pastores (os que fizeram o curso) não expõem esses pontos para seus fiéis? Se esses fossem pontos controversos entre os estudiosos, até poderia ter uma desculpa, mas esses casos de contradições internas e diferenças entre os livros da Bíblia são consenso entre os teólogos. Será que essa omissão tem como utilidade a distância de polêmicas? Ou será que os padres e pastores tem medo de afastar os crentes? Ou será que a fé faz as pessoas, durante os cursos, tamparem os ouvidos para aquilo que pode enfraquecer sua crença na existência do Deus judaico cristão ou na autoridade da Bíblia? Bom, de qualquer forma, podem ser todos esses fatores juntos, eu não sei. Essa questão está tão clara para mim quanto para você que está lendo.
Fontes / Saiba Mais
Quem Foi Jesus? Quem Não Foi Jesus? - Bart Ehrman
O Que Jesus Disse? O Que Jesus Não Disse? - Bart Ehrman
O Problema Com Deus - Bart Ehrman