Autor: André Rabelo
Texto também publicado no Ciência Uma Vela No Escuro
Vinicius Thomé Ferreira é doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRGS) e atualmente é professor da Escola de Psicologia da Faculdade Meridional (IMED). Tem experiência em intervenção terapêutica, atuando principalmente nos seguintes temas: saúde, bioética, psicopatologia, psicologia evolucionista, psicologia cognitiva, avaliação psicológica e psicoterapia.
Além disso, mantém um ótimo blog de divulgação científica, o Psicologia Cognitiva. A seguir vocês poderão ler uma entrevista concedida gentilmente por ele para o blog Ciência – Uma Vela no Escuro, explorando uma série de aspectos acerca da psicologia cognitiva, da ciência cognitiva e da terapia cognitiva.
Vinicius, o que é a psicologia cognitiva?
A psicologia cognitiva é uma área da psicologia que se ocupa de estudar os fenômenos mentais, especialmente aqueles que envolvem as informações que temos sobre o mundo (recepção, organização, armazenamento, processamento e expressão). Esses fenômenos são chamados de processos cognitivos, pois permitem que tenhamos algum tipo de representação, um conhecimento do mundo e de nós mesmos.
Qual a importância da psicologia cognitiva hoje no panorama mundial da psicologia?
Ela é uma das correntes psicológicas mais influentes na atualidade. Ela cresceu muito com a necessidade de termos na psicologia um referencial teórico que conseguisse lidar com o pensamento tão bem como o behaviorismo lida com o comportamento. Talvez o grande mérito da psicologia cognitiva seja o esforço de analisar com experimentação controlada os fenômenos mentais como o pensamento, a percepção, a memória e a linguagem, estabelecendo de forma robusta o conhecimento sobre estes fenômenos. Além disso, possui uma aplicação prática na educação, auxiliando no desenvolvimento de materiais educacionais de melhor qualidade, e na psicoterapia. No campo organizacional, permite a compreensão mais afinada dos processos de comunicação, além de ser um recurso que pode aumentar a eficiência e a eficácia do trabalho.
Qual é a representatividade da psicologia cognitiva nas universidades brasileiras?
Ainda é baixa, mas está crescendo. A América Latina sempre teve grande influência do pensamento europeu, materializado na psicanálise e na psicologia social, especialmente a de esquerda. Aqui no Rio Grande do Sul por exemplo esta influência é especialmente forte, principalmente da psicanálise, graças à proximidade com a Argentina, que historicamente acabou influenciando a formação de várias gerações de psicólogos.
Entretanto estamos observando que está ocorrendo uma ampliação mais ou menos sutil da influência da psicologia cognitiva, graças a uma decisão do Ministério da Educação e de uma opção do Conselho Federal de Psicologia por uma formação de fato mais generalista na psicologia, o que favoreceu muito áreas tradicionalmente menos influentes. Isso obrigou as faculdades e universidades a capacitar melhor seu corpo docente pela contratação de profissionais referenciados pela psicologia cognitiva, ampliando sua representatividade no corpo docente.
O que é a mente para a psicologia cognitiva?
Penso que não é possível definir a mente de uma forma única. Na psicologia existem vários termos que possuem várias definições, de acordo com a teoria de referência, ou mesmo pelas correntes de pensamento dentro das próprias teorias. Mas creio que, de forma geral, a mente pode ser entendida como o conjunto de funções realizadas pelo organismo que permitem receber, armazenar, evocar, processar e comunicar as informações, efetuando uma função adaptativa ativa.
Qual a diferença entre essa mente e o que algumas religiões se referem como “alma”?
Discutir este ponto é algo delicado, pois ultrapassamos a fronteira da ciência e entramos no campo religioso. Ao fazer isso, é fundamental compreendermos que estamos numa área do conhecimento humano que não compartilha dos mesmos pressupostos de investigação que a ciência; a ciência baseia-se na dúvida e na investigação empírica e sistemática do mundo, enquanto que o conhecimento religioso está embasado na fé, na crença em algo.
Isso diferencia essencialmente o pensamento científico e o religioso, conferindo-lhes propriedades diferentes. A diferença entre a mente e a alma é que a alma é artigo de fé, enquanto que as funções mentais podem ser estudadas através das ferramentas científicas. Não sei como os teólogos e interessados na alma fazem para efetuar suas investigações, mas não é com as ferramentas da ciência. Devem ter métodos próprios para fazer isso e para chegar a suas próprias conclusões. De qualquer forma, também precisam convencer os outros, através da argumentação e do apelo à fé, sobre suas conclusões. Certamente não é isso o que a ciência faz quando investiga a mente.
É científico estudar algo que não podemos ver ou tocar?
Perfeitamente. Na ciência, o que chamamos de “ver” ou “tocar” tem outra conotação. A ciência somente pode estudar o que de alguma forma for observável, e por observação podemos compreender quaisquer formas de registro da informação. Assim, se conseguimos transformar algum fenômeno de forma que possamos mensurá-lo, de forma direta ou indireta, ele pode ser considerado objeto científico de observação. O pensamento pode ser um exemplo disso: não conseguimos “ver” o pensamento de uma pessoa, mas podemos perguntar-lhe o que estava pensando, ou podemos mesmo analisar os registros de neuroimagem enquanto estava pensando (aferição indireta).
O fato de não conseguirmos ter um registro direto de um fenômeno não o invalida. A física lida com este problema todos os dias, mas nem por isso seus pilares conceituais estão invalidados. Talvez o esforço principal seja de conseguir definir bem o fenômeno para podermos estudá-lo, mas qualquer ciência faz isso antes de ir a campo. Depois de testar, conferimos se a definição ou os dados são bons; se não, recomeçamos. É desta forma que a ciência vai se aprimorando.
O que você acha da acusação feita por alguns behavioristas que chamam a ciência cognitiva de “criacionismo da psicologia”?
Skinner fez referência à ciência cognitiva como o criacionismo da psicologia. Penso que novamente o que está em jogo é uma questão conceitual. Não poderíamos esperar uma crítica diferente desta do grande pensador do behaviorismo, contudo precisamos ter clareza sobre o que ele compreendia por mente ao tecer a crítica. Se por mente ele englobava todo e qualquer fenômeno subjetivo e de difícil definição operacional, por qualquer razão, que mais atrapalhava do que explicava, a crítica confere. Esta visão é compatível com a psicologia de sua época, pois o behaviorismo precisava deixar claro qual era seu ponto de vista e seus pressupostos, para demarcar terreno. Agora, a psicologia cognitiva obteve avanços expressivos nas últimas décadas.
Gostaria de saber, por exemplo, como o behaviorismo explica a perda de função motora provocada por um acidente vascular cerebral, ou pior, perda de memória ou perda de recursos de linguagem. As neurociências apontam que a perda de função (e consequente mudança de comportamento) ocorre pela lesão. Seria essa mudança de comportamento um operante? Não. Por óbvio o comportamento está intimamente atrelado ao funcionamento do sistema nervoso. Como isso ocorre é o que também se investiga na psicologia cognitiva. Os anos 1990 foram considerados a década do cérebro, visto que permitiram uma compreensão sem precedentes sobre a forma como nos comportamos. Se o behaviorismo não foi sensível a este avanço no conhecimento, a ciência cognitiva foi.
O que é a ciência cognitiva e qual a sua importância?
A ciência cognitiva é uma grande área de pesquisas, às vezes tomada por sinônimo da psicologia cognitiva. A ciência cognitiva estuda como a informação é processada, além de estudar também as interfaces de pensamento entre homem e máquina, a relação entre o cérebro e a mente e a capacidade de sistemas inorgânicos e baseados em outros elementos que não o carbono (como por exemplo os computadores) de processar a informação e simular o pensamento humano, só para citar algumas áreas.
O que é a terapia cognitiva? Ela é mais indicada para alguns casos?
A terapia cognitiva é o braço prático da ciência e da psicologia cognitiva. Possui como finalidade utilizar os conhecimentos básicos obtidos pelas pesquisas cognitivas para a modificação de padrões de pensamento, sentimentos e comportamentos através de estratégias sistematizadas de intervenção clínica. Assim, visa auxiliar os pacientes que apresentam transtornos mentais ou situações que estejam gerando sofrimento, construindo recursos mais eficazes para lidar com suas dificuldades.
A terapia cognitiva pode ser utilizada em todos os transtornos mentais, mas a literatura mostra uma aparente eficácia maior em transtornos de ansiedade (fobia social, agorafobia, transtorno de estresse pós-traumático, transtorno obsessivo-compulsivo e afins). Além disso, tende a apresentar resultados mais rápidos que outros modelos de psicoterapia.
Você poderia citar o nome de alguns autores importantes a nivel internacional hoje na Psicologia Cognitiva e na Terapia Cognitiva?
Dentre centenas, creio que posso citar Amos Tversky e Daniel Kahneman, Saul Sternberg e Steven Pinker, e na terapia cognitiva, não podemos deixar de citar Aaron e Judith Beck e Albert Ellis.
Quais são as áreas mais promissoras e avançadas da psicologia cognitiva hoje em dia?
Existem várias, mas a que mais me chama a atenção é a investigação da interface entre cérebro e comportamento. É um grande desafio ainda compreender como o cérebro organiza as informações sobre o mundo e como interconecta as diferentes regiões especializadas para construir a teia que regula o comportamento. Estamos ainda num estágio onde os avanços dizem respeito especialmente a capacidades motoras, como o trabalho em neurologia do professor Miguel Nicolelis, na Duke University, mas em alguns anos vamos avançar ainda mais na compreensão dos processos de pensamento. Esta é a grande fronteira da psicologia cognitiva.
Qual o futuro da psicologia cognitiva?
Vejo um futuro promissor para a psicologia cognitiva. Penso que a proximidade que ela possui com outras áreas do conhecimento, como a inteligência artificial e neurociências é uma grande vantagem, e será uma porta de acesso para a valorização da psicologia pelos profissionais destas áreas.
Neste aspecto, cabe fazer um comentário: as dissensões internas da psicologia fragilizam a ciência psicológica e o trabalho do psicólogo. Uma subjetividade excessiva e radical acaba afastando a psicologia das outras áreas do conhecimento, e para mim esta é uma grande perda. Quanto mais a psicologia estiver próxima a outras áreas consolidadas de conhecimento, melhor, pois mostra que ela é capaz de responder satisfatoriamente aos parâmetros científicos necessários para uma boa ciência. E a psicologia cognitiva é a melhor candidata para fazer esta ponte.
Quais livros você indicaria para alguém que queira conhecer melhor a Psicologia Cognitiva?
Recomendaria três: O homem que confundiu sua mulher com um chapéu, de Oliver Sacks; O erro de Descartes, de António Damásio; e Como a mente funciona, de Steven Pinker. Estes três livros possuem grande relação com a neurologia, mas dão boa base para quem deseja conhecer melhor o que estuda a psicologia cognitiva.