domingo, 5 de junho de 2011

Entre a Guerra e o Pacifismo: A Natureza Dualista do Ser Humano

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Seria ótimo se a espécie humana carregasse um senso moral que a impedisse de praticar atos violentos “pequenos” e principalmente de se engajar em chacinas, guerras e demais atrocidades. Rosseau estava errado ao cogitar a existência de um homem pleno em bondade e solidariedade em seu estado de natureza, longe da sociedade. Parece que o homem possui um tipo de classificador moralizante interno que em certas situações é desativado, fazendo com que qualquer tipo de atitude leviana contra um semelhante seja justificada (post justificado e explicado). 


Táticas de Desumanização
Como foi dito no post Instintos, Sociedade e Causas da Violência a maioria dos antropólogos era relutante em aceitar o passado sangrento da humanidade, quando ainda nos dividíamos em tribos e não em sociedades maiores como hoje, assim como a realidade violenta das sociedades de caçadores-coletores ainda existentes. Muitos desses antropólogos se recusava até de aceitar a existência de tribos canibais. Como exemplo dessa aterradora realidade é interessante citar o povo wari, e vive na Amazônia. No idioma desse povo há uma peculiar divisão entre classificadores de substantivos em “comestível” e “não-comestível”. Na classe dos comestíveis encontra-se qualquer ser que não seja um membro da própria tribos dos wari. Isso significa que outras tribos também são classificadas como comestíveis, revelando como a prática canibal se reflete até na língua. Como observou a psicóloga Judith Harris:
No dicionário wari
Comida é definida como “não-wari”.
Seus jantares são muito concorridos
Mas os não-waris detestam ser incluídos.
 No livro do psicólogo evolucionista e psicolinguista Steven Pinker, Tábula Rasa – A Negação Contemporânea da Natureza Humana, é usado um termo: táticas de desumanização. Essas táticas consistem em retirar de um grupo de humanos ou de um indivíduo, as características que o tornariam semelhantes, isto é, humanos. É esclarecedor pensar no canibalismo com tal termo em mente. Já parou para pensar no quão depravado é o ato de comer outra pessoa? Como alguém consegue bloquear toda a empatia que geralmente dedicamos às pessoas normalmente e simplesmente matá-la e comê-la? Se isso dissesse respeito à uma pessoa, poderíamos hipotetizar sobre a existência de transtornos e distúrbios, mas e quando isso se trata de toda uma tribo? Toda uma cultura dedicada ao ato de comer outras pessoas?

Como Lagostas e Humanos
 A não ser que sejamos vegetarianos, não costumamos ver grandes problemas em comer uma carne que sabemos que veio de algum animal que provavelmente foi caçado e morto em condições totalmente precárias. Com frequência, pancadas são dadas na cabeça de bois, que sangram inconscientes até a morte; peixes são empalados ainda vivos pra depois aparecerem em nosso almoço; pescoços de galinhas são torcidos como se torce um pano de prato molhado, lagostas são cozinhadas vivas e por aí vai. Não se espante tanto antes de pensar no fato de que essas atitudes que refletem um completo descaso com a vida também ocorrem entre indivíduos de nossa própria espécie (ou entre nações de indivíduos). Aparentemente, nós humanos criamos círculos morais que podem encolher ou se expandir. Quem está dentro desses círculos aproveitam da nossa melhor solidariedade, empatia e bondade. Mas quem está fora enfrenta o terror. Jonathan Glover mostrou que atrocidades frequentemente são acompanhadas de atos de desumanização: piadas e nomes pejorativos, vestimentas humilhantes e ridicularização do sofrimento alheio. Esse cenário é visto em guerras civis, em guerras entre nações, em brigas de rua, de colégio, esportes competitivos e no sistema carcerário (Glover, 1999).

Um experimento foi feito pelo psicólogo social Phili Zimbardo, da Universidade de Stanford. No porão da universidade, um grupo de alunos voluntários foi escolhido para serem os prisioneiros e outro grupo, para representarem os carcereiros. Os prisioneiros usavam batas, bolas de ferro amarradas nos pés e eram chamados por números de série. Pouco tempo depois os guardas começaram a agir como guardas realmente, pedindo para que os prisioniros fizessem flexões enquanto os guardas sentavam em suas costas, usava extintores de incêndio para borrifar em seus rostos, obrigando-os a limpar privadas com as mãos (sem luvas) e etc. Zimbardo resolveu interromper o experimento em nome da segurança dos voluntários do estudo (Zimbardo, Maslach & Haney, 2000).

Não Se Desespere
Bom, como eu disse antes, o circulo de moralidade humano pode também expandir. Em episódios brutais às vezes o lado “humano” em nós pode aflorar. George Orwell (isso mesmo, o autor do livro 1984) relatou que, enquanto lutava na Guerra Civil Espanhola, por acaso viu um homem fugindo desesperadamente, seminu, segurando as calças com uma mão apenas.
“Abstive-me de atirar nele. Não atirei em parte devido àquele detalhe das calças. Eu tinha ido lá para atirar em ‘fascistas’; mas um homem segurando as calças não é um ‘fascista’, ele é visivelmente um semelhante, uma criatura igual a mim.” (citado em Glover, 1999, p. 53).
Outro relato, também citado pelo filósofo Glover, noticiado num jornal sul-africano:
Em 1985, na velha África do Sul do apartheid, houve uma manifestação em Durban. A polícia atacou os manifestantes com a costumeira violência. Um policial perseguiu uma mulher negra, obviamente com a intenção de espancá-la com o cassetete. Quando ela correu, seu sapato escapou-lhe do pé. O brutal policial era também um jovem afrikaner bem-educado, que sabia que quando uma mulher perde o sapato deve-se pegá-lo para ela. Os olhos de ambos se encontraram quando ele lhe entregou o sapato. Ele então a deixou, pois espancá-la não era mais uma opção.” (citado em Glover, 1999, pp. 37-8)

Assim Na Cidade Como Na Selva
Se os chimpanzés tivessem revólveres e facas e soubessem
manejá-los, eles os usariam como os humanos.

Jane Goodall

Chimpanzé agressivo do filme Planeta dos Macacos
Ao que tudo indica, se os primatólogos estiverem certos em suas análises, a tendência humana de subjugar grupos que não o seu próprio é algo já antigo na história da vida. Os chimpanzés possuem uma dieta bem eclética. Eles se alimentam de vegetais, mas hoje já se sabe que eles são muito mais carnívoros do que antes supunhamos. Não é raro encontrar chimpanzés machos matando outros e depois os comendo. No livro Eu, Primata, o primatólogo Franz de Waal narra um dia em que estava na floresta e viu um macaquinho nas costas de sua mãe balançando algo alegremente. Olhando melhor Waal percebeu que o pendurucalho do bebê chimpanzé era o rabo de um chimpanzé que provavelmente fora morto pelas redondezas. Nas vizinhanças de Uganda virou epidemia o roubo de bebês pelos chimpanzés. Como a população não possui armas para se defender, os chimpanzés podem usar e abusar de sua agressividade. No Parque Nacional de Gombe um chimpanzé chamado Frodo avistou uma mulher andando próxima com seu bebê no colo. Frodo imediatamente investiu contra am mulher, roubando a criança e fugindo. Tempo depois ele foi encontrado comendo a criança já morta (Waal, 2007).

A tendência para a xenofobia, conflito letal e à identificação com grupos, presentes na natureza, se combinou com a nossa sem igual capacidade para planejamento para produzir uma espécie militarizada capaz de elevar a violência a um novo (e pior) nível. Isso é especificamente bem visto em sociedades primitivas (no sentido de viverem como caçadoras-coletoras). Assim como os chimpanzés, as pessoas dão menos valor à vida de quem quem não pertence ao seu grupo e são altamente territoriais. Em seu livro, Waal (2007) cita uma história que um antropólogo contou. Ele estava numa aldeia em Papua Nova Guiné com dois líderes da tribo. Os dois iam fazer sua primeira viagem num pequeno avião. Antes de embarcarem perguntaram ao antropólogo se poderiam deixar a porta do avião aberta e levar algumas pedras grandes à bordo. O estudioso avisou sobre o frio que faria lá em cima mas os líderes não ligaram. Em seguida foi revelado que eles queriam levar pedras e deixar a porta aberta para poderem atacar uma aldeia vizinha. À noite, conta Waal, o antropólogo anotou em seu diário que viu a invenção da bomba atômica pelo homem neolítico.

Do mesmo jeito que os chimpanzés podem ser tão sanguinolentos, ou até mais, quanto os humanos, também existem primatas que possuem uma cultura de paz até mais intensa que a dos humanos. Os bonobos são um exemplo disso. Em geral os bonobos reagem melhor a encontros entre grupos do que seus primos, os chimpanzés. No início, os bonobos podem reagir de forma um tanto hostil, mas logo as fêmeas, mais abertas ao contato social, começam a coçar umas às outras, caçar piolhos e até fazer sexo (!) entre si, promovendo um ambiente mais pacífico. Os machos são um tanto mais reservados, mas também são pacíficos e em alguns casos também fazem sexo entre si como forma de interação grupal. Conflitos também podem ocorrer nesses encontros, mas nunca foi registrado uma morte nessas ocasiões, ao contrário do que acontece nos grupos de chimpanzés. É digno de nota que esses primatas também possuem algo equivalente a uma cultura. Em geral podemos dizer que o bonobos são pacíficos, mas existem grupos com uma cultura que foge da média, seja para o lado da pacificidade intensa ou pra uma maior agressividade. Com os chimpanzés podemo dizer a mesma coisa. Esses macacos são tmperamentais, se apegam aos seus territórios e são xenofóbicos, mas existem culturas mais agressivas ou mais pacíficas dentro da espécie. 
Bonobo

Veja, por exemplo, o caso do gorila que salvou um garotinho que caiu dentro de sua jaula no zoológico. O gorila observou-o e o pegou, devolvendo carinhosmente o menino para os homens do resgate. Resumindo a história, parece que o ser humano, mesmo tendo a agressividade incrustada em seus genes e em sua história, pode investir em sua sociabilidade, em comportamentos que o façam se sensibilizar com o próximo. Parece que o homem encontra-se entre os chimpanzés e os bonobos, ao mesmo tempo tendo potencial para agir como ambos, isso significa que tlvez ainda haja esperança se tivermos o conhecimento e a paciência necessária para mudar as coisas, seja no nível social ou no individual. 

Referências:


Glover, J., Humanity: A moral history of the twentieth century, Londres, Jonathan Cape, 1999.

Zimbardo, P. G., Maslach, C. & Haney, C., “Reflections on the stanford Prison Experiment: Genesis, transformations, consequences”, em T. Blass (ed), Current perspectives on the Milgram paradigm, Mahwah, N. J., Erlbaum, 2000.