A leitura da
Bíblia é algo complexo, se quisermos realmente análisá-la historicamente. Os
religiosos, e até os não-religiosos mas leigos no assunto, acham que o melhor
modo de lê-la é óbvio e intuitivo, afinal, é um livro como quaquer outro, então
a leremos como um livro. Porém, a Bíblia não é um livro comum, igual aos
outros. O Antigo Testamento é formado por 39 livros escritos por dezenas de
autores ao longo de 600 anos no mínimo. O Novo Testamento, composto de 27
livros, foi escrito por 16 ou 17 autores ao longo de no mínimo 70 anos. Todos
esses livros foram compilados no que chamamos hoje de Bíblia – levando em conta
também que muitos outros textos e livros foram prduzidos, mas foram excluídos
do cânone. Isso significa, como veremos, que a Bíblia não é um livro uniforme e
bem encadeado, apesar de ser sido construído para tal, e que, se soubermos como
olhar para ele, as evidências dessas falhas aparecerão (Confira aqui o post que fala sobre outras falhas).
Modos de se ler a Bíblia: Horizontal e
Vertical
A maioria das
pessoas faz uma leitura da Bíblia, chamada leitura vertical. Essa pessoa lê o
livro página por página, do início até o final; começando pelo Antigo
Testamento, no livro do Gênesis até a sua última página, no Novo Testamento. Mas
essa é uma leitura padrão para um livro qualquer, isto é, escrito por um autor,
num intervalo de tempo não muito longo e feito de maneira uniforme, o que
significa que todo ele foi escrito levando em conta a existência de partes
anterores que devem fazer sentido com as posteriores. Porém, os historiadores e
teólogos que seguem a abordagem crítica, como o teólogo Bart Ehrman, preferem a
chamada leitura horizontal. Exemplo: temos o evangelho de João e Marcos, que
narram a vida de Jesus. Ao invés de lermos um evangelho de cada vez (leitura
vertical), podemos ler no evangelho de Marcos sobre a morte de Jesus e depois
ler sobre o mesmo período, no evangelho de João. Isso é a leitura horizontal.
Também
devemos considerar que todos os textos que formaram a Bíblia no séc. IV d.C,
foram escritos separadamente, ou seja, o autor de um evangelho escrevia o seu
texto sem ter consciência da existência de um autor diferente que escrevia uma
outra narrativa em algum outro local. Dessa forma, esses textos não foram
escritos com a intenção de um complementar o outro, mas cada um foi escrito com
a intenção de ele sozinho suprir a necessidade de toda a comunidade cristã que
o lia. No presente post, continuarei usando os evangelhos de João e Marcos para
exemplificar melhor o que descrevi até então.
Evangelhos de Marcos e João – Iguais,
Mas Diferentes
Historiadores
acreditam que o evangelho de Marcos seja o mais antigo de todos, tendo sido
escrito por volta do ano 70 d.C., enquanto o de João é tido como o mais
recente. Ambos os evangelhos se parecem em muitos aspectos fundamentais. Ambos
descrevem, por exemplo, a morte de Jesus. O problema é que os dois evangelhos
apresentam diferenças inconciliáveis, ou seja, nem mesmo apelando para a idéia
da complementaridade dos relatos, podemos safar a Bíblia destes erros. Antes de
prosseguir falando sobre essas diferenças, sugiro que você tenha uma boa noção
da Pessach, como é chamada a Páscoa
judaica.
Entendendo a Páscoa Judaica
Essa era uma
festa tradicional da religião judaica, cujo objetivo era a celebração da
libertação dos judeus dos domínios egípcios. Ela era celebrada uma vez por ano,
a partir do início da noite, então, começava a comilança. Cada alimento na ceia
tinha um significado: o cordeiro, para festejar o sacrifício deles no Êxodo;
ervas amargas para lembrar os judeus de sua amarga escravidão no Egito; pão
ázimo (sem fermento), para que lembrem de sua fuga do Egito, sem que o pão
tivesse tempo para crescer; e, finalmente, o vinho (Marcos 14:12).
Porém, antes
que a ceia começasse, ou seja, durante a tarde, antes de o Sol se pôr, era o
momento de sacrificar o cordeiro, e muitos judeus o faziam indo à Jerusalém,
onde provavelmente também compravam o animal. Esses horários existiam porque
para os judeus, um novo dia sempre começava com o pôr do Sol, assim, a Pessach, na verdade, ocorria no dia seguinte ao sacrifício do
cordeiro. De forma mais simples:
12:00 até 18:00 – sacrifício do cordeiro (final do dia)18:00 até 18:00 do dia seguinte – ceia (início do dia)
Pronto, agora
você já está pronto(a) para entender o que diz em cada um dos dois evangelhos.
Marcos
Nesse
evangelho, é relatado que na última semana de vida de seu mestre, os apóstolos
perguntam onde ocorrerão os preparativos para o Pessach (Marcos 14:12). Depois disso, como que respondendo à
pergunta, Jesus se dirige, junto com os outros, à Jerusalém, onde – como foi
mencionado – ocorre compra e sacrifício dos cordeiros. Esse era um costume
tradicional da maioria dos judeus, apesar de alguns grupos dissidentes – como
os essênios – divergir de datas e métodos na comemoração.
Assim, no dia
do evento, Jesus e seus discípulos elaboram uma ceia, onde são usados os mesmos
alimentos de uma tradicional ceia judaica, porém, Jesus ressignifica toda a
simbologia por trás daqueles alimento (Marcos 14:22-25):
-Pão ázimo:
“Tomai, isto é o meu corpo”.
-Vinho: “Isto
é o meu sangue, o sangue da Aliança, que é derramado em favor de muitos”.
Depois disso,
ocorre a célebre ida ao Getsêmani, onde Jesus espera pela chegada dos romanos
junto com Judas. Enfim, pulando para mais adiante, no dia seguinte, às 9:00, ainda no Pessach, Jesus é crucificado.
João
Não existem
muitas diferenças entre esse relato em Marcos e João, mas os que existem são
significativos. A principal diferença que podemos destacar logo no início dessa
história é que em João, os discípulos não perguntam onde serão os preparativos
para a Páscoa. Eles até fazem um lanche, mas não fazem a ceia, porque em João,
nesse momento não é a Páscoa ainda. Consequentemente, não há a parte em que Jesus atribui um novo
significado aos alimentos da ceia; só o que ocorre é que Jesus lava os pés de
seus discípulos (João 13:1-20). Logo depois parte para o Getsêmani e ocorre a
traição. Já de cara com Pilatos, a sentença é proferida, mas João 19:14 diz que
isso ocorre no momento da preparação para o Pessach.
Afinal, é Páscoa ou não? E por que
isso é importante?
Até aqui você
pode ter achado interessante a divergência que ocorre nos dois escritos mas
pode estar se perguntando: “Ué, mas por
que isso é importante para a doutrina cristã? Afinal, de um jeito ou de outro,
Jesus foi crucificado!” Exato, mas os detalhes diferentes revelam que os
autores tem diferentes concepções sobre
o significado da crucificação.
No evangelho
de João, logo no início, podemos ver que ênfase o autor quer dar para esse
evento e para a posição de Jesus nele. Veja esses dois trechos, citados duas
vezes: “Jesus é o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (João 1:29 e
1:35). Isso é tão importante que é dito duas vezes. Se lembrarmos do Pessach veremos que o cordeiro exerce
papel também na ceia, afinal, é ele quem deve ser sacrificado na tarde antes do
início da data festiva. Nesse caso, João coloca Jesus como o cordeiro de Deus
que vai tirar o pecado do mundo. O sacrifício de cordeiros sempre tido como
algo que agradava à Javé, e dessa vez não seria diferente. Só que dessa vez
seria dado um outro tipo de cordeiro, um que ao invés de aplacar os pecados
humanos temporariamente, daria o perdão eterno por todos. E isso é evidenciado
no fato de que João fez questão de modificar os dados de Marcos e adaptá-los
teologicamente. Já que Jesus seria crucificado antes do Pessach, de fato, ele seria como o cordeiro que é abatido antes do
evento.
Vemos, assim,
que a Bíblia não é um grande livro composto por textos que casam-se entre si,
mas que possuem contradições também, e isso é explicado pelo fato de que cada
um desses textos eram escritos para atender às necessidades de comunidades
distintas. E tais palavras eram escritas levando em conta o significado
daquilo, não a precisão histórica.
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