Zen |
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Tenho três amigos com os quais converso com frequência sobre assuntos
dos mais diversos. Um deles é um Ateu Militante. Segundo ele, toda e
qualquer religião é um caminho para a ignorância e nos afasta da ciência
e do avanço da humanidade. Outro é um Pastor Evangélico Calvinista,
para o qual toda e qualquer religião que não seja a dele leva as almas
para o inferno e, por isso mesmo, todos devem seguir sua religião se
quiserem a salvação. O terceiro amigo é um agnóstico hedonista que não
está nem aí para a espiritualidade dos outros, mas faz o possível para
sempre criticar os outros que se portam com um mínimo de autocontrole.
Em suma, são pessoas que não somente acham que todos só serão felizes do
jeito deles, como ainda criam um conjunto de estereótipos acerca do
outro sem nem mesmo procurar entender primeiro.
Daí, posso dizer que todos eles possuem um conjunto de 17 estereótipos padrões sobre o Budismo:
"O Budismo acredita em um ser superior que controla as nossas vidas"
O
único ser superior presente no Budismo é a Natureza Búdica, que, na
verdade, é o próprio sujeito. Isso significa que o Ser Supremo do
Budismo é o próprio praticante. Além do mais, o Budismo é uma religião
essencialmente de ateus e agnósticos. Não há um criador, um agente
pessoal eterno, e nem mesmo um Apocalipse dirigido. São coisas que não
interessam à maior parte dos Budistas. Na verdade, discutir se existem
deuses ou não é um assunto completamente sem sentido para um Budista.
Doutrinariamente, não há deuses no Budismo, nem qualquer ilusão externa
ao indivíduo que o salve ou o condene, nem especulações sobre o início
ou o fim dos tempos, e muito menos a preocupação em religar-se a uma
entidade Mística Sobrenaturalista. O Budismo (principalmente o Zen)
procura apenas uma experiência plena com a realidade, o que descarta a
necessidade de deuses.
"O Budismo é sobrenaturalista"
Essa
frase é muito usada por ateus que querem recriminar todas as práticas
espirituais, assim como pelos cristãos, que querem usar esse dado para
tentar nos convencer a segui-los. É um dado mais comum no Zen-Budismo,
que constata que tudo o que existe É a natureza, e, portanto, natural.
Se tudo é natural, nada existe sobre a natureza, e portanto não existe o
sobrenatural. Um Budista esclarecido não perde tempo especulando sobre
que há além da vida ou do plano físico, apenas se vive e se melhora ESTA
vida. Não somos todos místicos ou esotéricos (isso fica a cargo do
praticante). O sobrenaturalismo, porém, é escolha do praticante. Alguns
são ateus, outros são teístas. Alguns são místicos e esotéricos, e
outros são céticos e materialistas. Nenhuma crença ou percepção
espiritual é uma obrigação.
"O Budismo é um sistema de crenças"
As
pessoas confundem Sistemas Éticos com Sistemas de Crenças, como se
fossem a mesma coisa. Um Sistema de Crenças é um conjunto de
pressupostos sem os quais um modo de ver o mundo não funciona. O
Cristianismo precisa de um conjunto de pressupostos, bem delimitados no
Credo Niceno-Constantinopolitano. Você deve confiar no Credo. O mesmo se
diz do ateísmo: você tem um conjunto de crenças a serem seguidas. No
Budismo, há uma história simbólica que pode ser questionada. Isso porque
os budistas não vivem na dicotomia crer/não-crer que existe no
Ocidente. Sua concepção está mais na área do fazer/não-fazer. Assim, não
é preciso crer no Zen, mas apenas praticá-lo.
"O Budismo é contra as armas"
O
Budismo é pacifista, mas não contra as armas. Na verdade, o Budismo é
um conjunto de práticas de melhora pessoal do indivíduo e de ajuda a
outros indivíduos no que se pode ajudar. Muitas tradições até incentivam
que o indivíduo aprenda a se defender por meio de qualquer coisa que
estiver ao seu alcance (daí muitos budistas no passado terem inclusive
desenvolvido artes marciais, algumas letais). A ideia do mestres em
artes marciais é: para se defender, faça o possível, até mesmo mate seu
agressor, mas deixe-o de lado assim que a ameaça for eliminada. Não é de
se admirar que as artes marciais mais famosas (algumas com o uso de
armas) tenham surgido a partir de ideais budistas: aikidô, jiu-jítsu,
judô, kung fu shaolin (este com o uso de armas), dentre outros.
"O Budismo incentiva o praticante a renegar o mundo"
O
Budismo é apenas uma doutrina que preza pela melhoria espiritual do
indivíduo para que ele viva bem e feliz em qualquer situação em que
estiver. Assim,não é obrigatório ninguém se tornar um monge, um mendigo
ou um eremita. Pelo contrário, o Budismo ensina um caminho espiritual de
"limpeza do ego" que permita que monges e leigos, mendigos e
milionários, eremitas e celebridades, eruditos e incultos, onívoros e
vegetarianos, jovens e velhos, todos, sem distinção de qualquer espécie,
possam viver bem consigo mesmos e buscar o bem dos outros. Logo,
ensina-se a não se apegar às coisas, mas também a não ter aversão a
elas.
"O Budismo crê na reencarnação"
A
Reencarnação é uma introjeção conceitual do Ocidente, e não uma
doutrina Budista. Uma vez que nenhuma semente permanente sobrevive à
nossa morte, a Reencarnação ou Transmigração da Alma (uma semente
permanente) é um conceito estranho ao Budismo. Em vez disso, usa-se o
termo Renascimento ou Remanifestação, para o qual o que existe é um
conjunto de ações éticas e de materiais prévios que nos causa e que
deixaremos para causar outras coisas, e ainda serviremos de material
prévio para outras coisas. Por isso, dizemos também que o Budismo não é
voltado a uma vida após a morte, pois uma das buscas dos budistas é o
esvaziamento do Eu. Se não está preparado para começar a esvaziar, não
siga em frente. O Eu, como tudo no universo, é impermanente. Não existia
antes do nascimento, e não durará depois da morte. Ao morrer, a
consciência, o Eu, se apaga como o fogo de uma vela, e evapora como uma
gota de água sobre uma chapa quente. Logo, não existe crença no
pós-morte para o Budismo.
"O Budismo possui leis, regras e mandamentos"
Um
mandamento é uma regra inflexível, cuja não execução é punida por leis
religiosas próprias (ou com ameaças de inferno ou promessas de paraíso).
No Budismo não existem mandamentos, mas preceitos, ou seja, conselhos
de mestres que, em anos de prática, perceberam que determinado caminho
era o melhor a ser seguido e ensinaram isso aos discípulos, mas nunca
obrigaram ninguém a seguir determinada postura ética. Significa que não
há coisas obrigadas no Budismo, apenas indicações de qual o melhor
caminho, mas nenhuma obrigação de se seguir este ou aquele caminho. Por
exemplo: no Zen pede-se para fazer o Zazen, mas isso não é obrigatório, é
apenas algo que os mestres aprenderam por gerações e compartilharam com
seus discípulos. Se qualquer discípulo acha que outro caminho é melhor
em relação ao Zazen, que aprimore esse caminho para que seja eficiente.
"O Budismo possui dogmas e rituais"
Quanto
aos rituais, admito que pode ser verdade (há a presença de templos
também). Apesar de nenhum deles ser obrigatório, o ritual é uma peça
chave, pois ajuda na prática e cria um hábito na aplicação da ética.
Quanto aos dogmas, o Budismo não possui. Todas as suas doutrinas são
postas à prova pelos mestres aos seus discípulos. O Budismo não é uma
doutrina de "está escrito, tem que aceitar". Não é uma religião
dogmática e inquestionável, mas uma religião do experimentar. Não
focamos em doutrinas pura e simplesmente sem, antes, focar a atenção na
experiência. Além disso, o Budismo exige de seus praticantes uma
constante postura crítica e cética, tanto em relação a doutrinas e
ideologias, como em relação a crenças pessoais e à sua própria pessoa.
Para isso sugiro ler o Kalama Sutra, em que o próprio Buda nos aconselha
a não aceitar tudo o que se diz sem experimentar primeiro, nem mesmo
seus próprios ensinamentos. Um espírito questionador é, portanto,
essencial a um Budista.
"O Budismo é uma religião/psicologia"
Uma
religião é um sistema de "religamento" entre o homem e um deus ou ser
superior, que se dá mediante contratos de crença, fé e ritual, e quase
sempre sustentada pelo mito. Uma psicologia é um sistema de
"reajustamento", em que pessoas que estão em desequilíbrio com o meio
social buscam ajustar-se à sociedade. O Budismo é uma prática ética de
autoanálise e automelhoria, ou seja, não há um deus ao qual religar-se, e
muito menos privilegia-se uma sociedade padrão à qual ajustar-se. O
Budista está só, e ponto final.
"O Budismo acredita que você só é feliz sendo budista"
Há,
no Budismo, um exercício ético interessante: compreender que qualquer
pessoa, de qualquer vida espiritual benéfica, pode alcançar a iluminação
e tornar-se um Buda. Por isso os budistas não estão preocupados se você
é budista ou não-budista, estão interessados apenas se você se aprimora
enquanto indivíduo e se é feliz. Diferente do Cristianismo (que
baseia-se na pregação de uma salvação) e do Neoateísmo (baseado na
pregação anti-religiosa), o Budismo não se baseia na "pregação" de uma
verdade, mas no exemplo de seus praticantes. Para tanto, sua principal
forma de propagação é o "ver e vir", demonstrar pelas ações e ensinar
somente aos interessados. O "ver e vir" é o que faz, por exemplo, com
que o Budismo cresça muito entre grupos interessados. Os Cristãos enviam
missionários que saem pregando e convertendo as pessoas. No Budismo, um
pequeno grupo se converte e só depois é que PEDEM a um centro que envie
um missionário. No Cristianismo, a conversão é empurrada a você, no
Budismo, a conversão vem somente de você.
"O Budismo preza pelo ascetismo e pelo fim da individualidade"
As
pessoas confunde muito o prazer (a simples sensação agradável) com o
desejo (ânsia de ter a sensação agradável a todo custo), e com isso
acabam transformando o Budismo e uma espécie de ascetismo. Na verdade,
não se procura eliminar o prazer nem a dor, mas apenas buscar o "Caminho
do Meio", ou seja, encontrar um meio termo entre os dois, a moderação.
Quanto à individualidade, ela é uma mera ilusão, mas deve ser
respeitada. Logo, não existe no Budismo a preocupação extrema com a
sexualidade do outro (muitos Budistas são homossexuais, e os centros
budistas celebram casamentos homossexuais), com as opiniões do outro (a
opinião deve ser respeitada), com a família do outro (o Budismo não tem
um "plano" padronizado para modelos familiares), com as crenças do outro
(há budistas céticos e esotéricos, ateus e teístas, convivendo
tranquilamente) e muito menos com a vida particular do outro (não
ficamos vigiando as ações do outro para ver se estão "pecando").
"O Budismo é machista, homofóbico e racista"
Apesar
de algumas escolas (Tailandesa, Theravada, Tibetana) terem algumas
reservas em relação ao homossexualismo ou à participação ativa de
mulheres, os próprios mestres sabem que o próprio Buda Histórico
recriminou seus discípulos por agirem, pensarem ou interpretarem seus
ensinamentos de forma a diminuir a importância de outros seres humanos. A
ideia central do Budismo é que todos os seres podem viver de forma
harmoniosa, sendo as diferenças entre eles meras ilusões. Para ver como o
Budismo aceita o diferente, há mestres budistas homossexuais (Mestre
Jim Shalkham, da tradição Soto Zen), mestres budistas mulheres (Monja
Cohen, também do Soto Zen) e boa parte dos budistas ocidentais são
não-orientais (o que demonstra que não há primazia racial). Para o
Budismo, o essencial é que se aprenda a conviver com o outro e se aceite
o outro como ele é. Sempre somos lembrado que há muitos Bodissátivas
(outros budas) que eram homossexuais, mulheres, anões, ricos, pobres,
estrangeiros...
"Se você seguir o Budismo, deixará de sofrer"
O
Budismo apresenta um conjunto de ações ou conselhos de como diminuir o
sofrimento, que podem ser aplicados sem necessariamente você precisar
ser budista, ir a uma sanga, visitar um templo ou abrir mão de outras
práticas espirituais. Se, para deixar de sofrer, você tomou remédios e
hoje está feliz, ótimo, que bom! Fico muito feliz por você! Se, para
deixar de sofrer, você abraçou o Budismo e tornou-se um praticante
exemplar, ótimo do mesmo jeito, é igualmente bom! O que o Budismo
aconselha é que, para cessar o sofrimento, o indivíduo deve seguir o
Caminho Óctuplo, ou seja, ter um caminho ético. O caminho óctuplo é tão
somente o modo Budista de lidar com o comportamento humano, mas
não significa que você não possa ser Estoico, Consequencialista,
Humanista ou Utilitarista. Resumindo: você deixa de sofrer quando
encontra um caminho ético coerente e pessoal, alguns encontrando no
Budismo, outros encontrando no Humanismo. Simples assim!
"O Budismo é comodista"
Na
meditação aprendemos que existe uma diferença clara entre passividade e
comodismo. Passividade é tão somente o "deixar passar", é a velha
prática do wu-wei de transformar uma energia em outra, e não tentar
barrá-la. Se não entendeu isso, meditou de forma errada! É mais fácil
desviar do carro que tentar pará-lo com seu corpo como barreira. Uma das
principais atitudes do Budismo é o "faça". Não discuta o que fazer,
faça! O melhor caminho a se seguir é a ação. Por isso, quando se entra
no Budismo, tendo aquela ideia pré-concebida de pacifistas feitos de
manteiga que morrem a qualquer soco, costuma-se ficar assustado quando
nos deparamos com monges pró-ativos, budistas empresários e mesmo
aqueles com forte participação na vida política e na luta por direitos.
"O Budismo te fará feliz"
Eu
sou depressivo, e sou budista, e sou feliz. Não sou feliz porque sou
budista. Sou feliz porque aprendi a me compreender. O Budismo não
apresenta a fórmula da felicidade, mas para o Despertar. Se quer ser
feliz, encontre outros meios (de preferência, encontre meios internos
para a sua felicidade). Se você consegue ser feliz escrevendo livros ou
desenterrando dinossauros, ótimo, que bom! Porém, há, como em todos os
caminhos espirituais, gente que finge ser feliz para ser aceito. Se um
budista finge sorrisos, então não entendeu o Budismo. Há uma frase que
vi uma vez em um centro de Kung Fu de um amigo meu: "a felicidade é um sofrimento".
Segundo ele, era de um mestre zen. Mesmo que não seja, é bem esse o
espírito do zen: felicidade e infelicidade são distinções que fazemos,
não fazem sentido.
"O Budismo é muito complexo para os incultos"
Um
dos principais apelos do Budismo é que ele não vê distinções entre as
pessoas. Há budistas pós-doutores como há budistas sapateiros
semi-analfabetos. É fácil de ser compreendida essa característica do
Budismo pelo fato de Sidarta Gautama ter sido um príncipe letrado e
erudito, enquanto que o Sexto Patriarca do Zen-Budismo, Huineng, ter
sido um lenhador analfabeto e inculto, e ambos serem igualmente
respeitados nos dias de hoje. O Budismo não é um conhecimento acadêmico
para poucos que exige anos de estudo e aprendizagem das línguas
originais. Pelo contrário, ele é uma prática cotidiana, do dia-a-dia, é
tão somente agir. Como o Budismo se baseia em doutrinas muito simples e
em um viver mais prático, há muito pouco a ser deturpado caso alguém
tenha uma cultura menor que um monge. É uma vida espiritual para poucos,
tenham conhecimentos ou não.
"O Budismo é hierárquico"
Tudo
bem, admito que seja um pouco hierárquico, mas o sistema depende muito
de que escola falemos. Alguns apresentam uma organização social
complexa, dividida em classes, estrados, lamas e eruditos. Outras
escolas têm apenas a distinção simples entre o mestre e o discípulo. O
praticante não tem nenhuma obrigação de sustentar ou aceitar a
hierarquia do Budismo além da fundamental distinção entre mestre e
discípulo. Eu, por exemplo, que pratico o Zen-Budismo, ainda não tenho
mestre, e só procurarei um quando me achar preparado para ele. Se eu me
achar preparado, não vou sair escolhendo um mestre aleatoriamente, e nem
obedecendo ele em tudo, mas sempre analisarei seus ensinamentos e
tentarei aplicar. É o espírito do Budismo.
Diante do posto
aqui, espero que você, leitor, tenha percebido que, muitas vezes, não é
saudável viver de estereótipos. Mal sabem meus amigos que minha visão
não se adequa ao que eles costumam usar para julgar as religiões
ocidentais. Na verdade, as crenças monoteístas não são a regra de
comportamento espiritual, mas uma exceção que apareceu na história
humana. No mais, espero que todos fiquem em paz.