segunda-feira, 5 de março de 2012

A Metáfora Budista de Matrix

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Como já havia ressaltado antes em dois outros posts, (Descartes e o Mundo Ilusório e E Se Estivermos Todos Conectados na Matrix?) Matrix é um belíssimo filme que se utiliza de componentes filosóficos, tecnológicos e também religiosos, entre muitos outros. Em especial, acho que Matrix serve como uma excelente metáfora moderna do Budismo. Uma “farpa na mente” que nos incomoda sutilmente, o mundo como uma ilusão da nossa mente e o Escolhido que está destinado a, através de uma rigorosa disciplina mental, sair dela e voltar para ajudar a libertar toda a humanidade, trazem a receita infalível para uma história com um tema praticamente universal e que atrai a curiosidade de todas as pessoas desde que começamos a fazer as primeiras pinturas nas cavernas.


A Narrativa Mitológica de Matrix
Quando falamos em mitologia, uma coisa que quase automaticamente surge na nossa mente é a palavra “mentira”, tanto é que existe até um transtorno psicológico cujo nome é mitomania, cuja característica principal das pessoas nessa condição é mentir numa intensidade patológica. No entanto, o termo mitologia não precisa ser sempre entendido dessa forma. Quando falamos em mitologia estamos nos referindo às produções de significado e sentido que determinado povo, tribo ou conjunto de pessoas de qualquer tipo, criaram para guiar suas atividades e entendimento sobre a natureza, os indivíduos e as relações sociais, bem como as relações dos indivívuos e da comunidade com a natureza que os circunda e da qual eles fazem parte. Ao mesmo tempo, a mitologia acaba fornecendo também um quadro bem interessante dos medos e aspirações de uma dada sociedade. E esses aspectos psicológicos da mitologia são divididos em dois tipos que acabam se entrelaçando mais ou menos dependendo daquilo que estamos analisando: aspectos psicológicos comuns à toda a humanidade, pelo fato de sermos todos humanos e compartilharmos uma natureza e, também, os motivos culturais, regionais. E como uma dada narrativa mitológica é produzida.




Quando falamos, por exemplo, na tradição religiosa judaico-cristã, estamos falando de uma religião, mas a religião nada mais é do que o mito institucionalizado, engessado. E essa narrativa, que não deixa de ser, então, mitológica, tem seus componentes derivados também de outras mitologias. A história do Dilúvio e da Arca de Noé, assim, pode ser considerada um mito porque ela foi inspirada no mito babilônico de Utnapishtim, do Épico de Gilgamesh. Contudo, note que a raiz psicológica aí é a mesma, ou seja, apesar de falarmos de dois povos diferentes, vemos que a natureza do mito que os dois compartilham é a mesma, ou seja, o medo de uma divindade (ou mais de uma) e a necessidade de os humanos agirem em conformidade com seus mandamentos e etc. Nesse sentido, podemos dizer que histórias como a da série Star Wars, é sim um mito. Ali estão presentes medos fundamentais humanos, medos de nossa era (relacionados à tecnologia) e trajetórias de heróis mitológicos, como descrito no livro Herói de Mil Faces, de Joseph Campbell. Isto é, o que quis dizer aqui, resumidamente, é que o mito não é uma mentira, é uma metáfora, e nesse ponto, Matrix cumpre esses requisitos de forma sem exemplar. Os irmãos Wachowski confirmaram desde o início que são fãs declarados de teologia, mitologia e filosofia e que se basearam também no trabalho de Joseph Campbell sobre a Jornada do Herói, fonte na qual George Lucas também bebeu para produzir vários de seus personagens de Star Wars e o próprio contexto da série (Luke se encaixa perfeitamente na Jornada do Herói, assim como Neo, em Matrix). Portanto, Matrix constitui uma interessante narrativa mitológica da condição humana, inspirada em elementos budistas. Mas, peraí, o que o budismo nos diz sobre as pessoas e a realidade mesmo?



O Budismo em Poucas Linhas
Certamente, não pretendo escrever tudo que há para saber sobre o budismo, mas pretendo dizer, em poucas linhas o essencial para se enxergar a presença da filosofia budista no filme.
Como diz a tradição budista, o jovem príncipe Sidharta Gautama nasceu por volta do século 5 a.C. Sidharta era um nobre da casta dos guerreiros numa Índia hindu em que a sua casta era a que estava logo abaixo da dos brâmanes – isto é, era dotada de bastante prestígio e riqueza. Ele possuía esposa e filho e possuía um pai controlador que moldava o mundo onde o príncipe vivia para que ele nunca soubesse o que era o sofrimento. Seu pai, o Rei, literalmente limitava a vida de seu filho aos muros de seu palácio, onde existia todo tipo de prazer ao qual um ser humano poderia ter acesso. Qual motivo Sidharta, então, teria para querer outra realidade? Certo dia, o príncipe acabou tendo uma rápida visão daquilo que existia fora dos muros de seu palácio e sentiu curiosidade para sair e descobrir o que existia para além dali. Assim, acabou arrumando um jeito de fugir por ele mesmo e, dessa forma, presenciou o sofrimento e a dor que ele nem sabia que existia, como se algo sempre o tivesse cutucado e mostrado que havia algo errado com todo aquele cenário hedonista no qual vivera por anos. Ele viu, então, pessoas idosas, doentes e a morte. Assim, voltou para o seu palácio mas nunca mais foi o mesmo e decidiu que encontraria algum modo de acabar com esse sofrimento que era a experiência humana. Sidharta, nesse momento, decide abandonar sua vida de prazeres e requezas ilusórios e partir em peregrinação. 


A sociedade em questão era hindu, e os hindus acreditam que o tempo é cíclico, mais ou menos como concebemos o nosso ano, com estações do ano que sempre se repetem. Portanto, as coisas estavam fadadas a ir e vir. E essa concepção se infiltrava pelo pensamento religioso também, ou seja, existiria o samsara (dukka), uma existência cíclica de morte e renascimento. O que definia as nossas experiências boas ou ruins tanto nessa atual vida quanto na próxima, era o karma (é como uma lei de ação e reação). Só que, no pensamento hindu, todos os seres sencientes estavam submetidos à essa roda de morte e renascimento infinita. Mas Sidharta estava disposto a dar um fim nisso, afinal, estar inserido no samsara significava que continuaríamos morrendo e voltando a essa existência de sofrimento. O termo sofrimento não é a tradução mais indicada para o termo dukka. A tradução mais indicada seria algo como “insatisfação”. Esse sentimento se referia ao sofrimento em si, mas também ao sentimento inerente à nossa mente quando temos experiência agradáveis, de prazer, mas mesmo assim, lá no fundo, pensamentos até quando aquilo vai durar, que algo pode dar errado a qualquer momento ou, no caso da felicidade se prolongar, acabamos pensando que algo está errado pois nada pode ser tão perfeito. 


O Budismo seria uma religião muito pessimista se parássemos por aí, mas algo mais nos aguarda. Após andar com diversos monges ascetas por anos, praticar meditação e yoga intensamente, o que significava submeter seus corpos às situações mais rigorosas possíveis (os ascetas acreditavam que o único meio para dar fim ao dukka era esquecermos do nosso corpo material, que era o que nos prendia no samsara; assim todo o sofrimento da condição humana deixaria de existir). Mas, com o tempo, Gautama percebeu que não era essa a solução. Assim, largou o ascetismo e resolveu seguir uma causa própria, o Caminho do Meio. A partir daí ele chegou às Quatro Nobres Verdades:

1- O sofrimento (dukka) existe
2- O sofrimento tem uma causa
3- Há a cessação (nirvana) do sofrimento
4- Há o caminho para cessar o sofrimento (a senda óctupla)
Segundo caminho do Buda, uma das coisas que nos levava ao sofrimento era o não-conhecimento de que todas as coisas são perenes e desprovidas de natureza intrínseca. Mas o que isso quer dizer? O signficado disso é que tudo é passageiro, até o que nos dá prazer um dia acaba, ou se transforma em outra coisa. Assim, levarmos a vida ignorantes dessa verdade nos leva ao sofrimento, afinal, como vamos reagir quando algo que amamos ou algo que nos dá prazer simplesmente acabar, quebrar ou morrer? Assim, se já tivermos essa lei natural das coisas em mente, sofreremos menos. Sobre a ausência de natureza intrínseca, Buda ensinou que todas as coisas são interdependentes. Para que um fenômeno ocorra, para que algo exista, uma série de relações causais complexas tem que existir. Em relação a isso, a doutrina budista diz que insistir numa existência intrínseca do próprio eu (ego) significa dar combustível para atitudes egoístas e para o surgimento de mais sofrimento, através dessa ilusão de que existimos independentemente daquilo que está ao nosso redor. A mensagem final é como se fosse “estamos todos no mesmo barco, dependemos todos um do outro, então, não tem sentido agirmos em benefício próprio, em detrimento do outro”. 

Resumidamente, esse conhecimento (aliado às práticas que reforçam esse conhecimento, as quais não citarei aqui) acabaria por nos conduzir ao nirvana, que pode ser traduzido como extinção. Extinção de que? Do sofrimento, através da extinção de suas causas. Assim, Buda é um título que tem mais ou menos o mesmo significado que o termo Cristo, ou seja, quer dizer “iluminado”.  


Após a morte de Buda, aos 80 e tantos anos, seus ensinamentos se espalharam através de seus discípulos e de leigos que recebiam seus ensinamentos. Assim, foi um processo natural - mais ou menos como aconteceu com o Cristianismo – o surgimento de várias escolas budistas com divergências em certos pontos da doutrina. 


O Budismo Maaiana
A tradução para o termo maaiana seria Grande Veículo. Essa é uma escola budista que surgiu no primeiro século da era comum e resolveram se auto-denominar dessa forma em oposição às escolas mais antigas, as quais denominavam hinaiana (Pequeno Veículo). As formas mais antigas do budismo enfatizavam mais a busca individual pela iluminação, através da prática da meditação e de reflexões sobre a inexistência intrínseca das coisas e das pessoas e da interdependência, por exemplo. Ou seja, era uma escola essencialmente de caráter monástico. As que vieram depois, sob o título de maaiana, alegavam ter um caráter mais popular, menos individual. Isso era visível na noção de arhat no hinaiana. Esse era o ideal dos seus discípulos, ou seja, seguir os ensinamentos de Buda e atingir o parinirvana - estado de tranquilidade eterna e impessoal em que os Budas entravam ao invés de morrerem. No budismo maaiana em geral não existe esse ideal, mas, sobretudo o que se tem é o ideal do bodhisattva. 


Este seria aquele que alcança o mais alto nível dos ensinamentos do Buda, se aproximando muito da iluminação mas que, ao morrer, reencarna para transmitir os ensinamentos e fazer outras pessoas chegarem à iluminação. Assim, dentro do budismo, esses seres desenvolveriam um nível de compaixão tão cristalina e intensa que  abdicariam do tal parinirvana, por compaixão aos demais seres sencientes. Como exemplo dessa “filosofia” temos o Budismo Tibetano, cuja autoridade máxima, o Dalai Lama, diz-se, é o décimo quarto renascimento do bodhisattva da compaixão, que, ao invés de se tornar um Buda de vez, continua renascendo para ajudar na iluminação dos outros seres sencientes, compassivamente. A partir daí, numerosas versões surgiram sobre o Caminho percorrido por um bodhisatvva. Uma dessas versões fala de uma sucessão de 10 vidas em que ele aperfeiçoaria suas habilidades a ponto de ganhar poderes extraordinários e, muitas vezes, miraculosos. Por isso, surgiu no maaiana toda uma crença na existência dos chamados bodhisatvvas celestiais, que habitariam reinos celestiais dos quais desceriam e renasceriam na terra para nos ensinar o caminho da libertação. E quanto aos poderes miraculosos? 


Algumas escolas dentro do budismo maaiana consideravam o mundo como, acima de tudo, uma projeção mental nossa, assim, através da disciplina mental obtida através de treinamentos (yoga, meditação...) poderíamos modificar a própria natureza da realidade que nos cerca. Daí a lenda de os bodhisatvvas poderem “refazer” a realidade a seu próprio modo, aparecer em dois lugares ao mesmo tempo, fazerem coisas levitarem e etc. 


Por enquanto, acho que já dá pra perceber alguns paralelos com Matrix, não é mesmo? No próximo texto falarei mais explicitamente sobre como podemos visualizar essas questões e visões da realidade budistas no filme.