Os debates suscitados pelo DSM V perpassam várias áreas. A
psicologia, a psiquiatria, sociologia e outras, estão fortemente imbricadas nas
consequências desse manual (não só pela publicação de um novo, com modificações
em relação ao anterior, mas pela existência em si, de um livro como esses). No
meio das várias críticas traçadas – nas quais o transtorno pego como Judas é
sempre o TDAH – algumas se sobressaem. Umas, por serem muito boas e nos levarem
a uma reflexão profunda sobre nossas práticas terapêuticas, as teorias que
embasam essas práticas e qual sociedade estamos criando com elas. Outras,
destacam-se pela repetição de frases prontas – na verdade, rixas prontas e
antigas que quando mencionadas dão ar de intelectualidade – e alguns argumentos
falaciosos.
Mostrei já duas situações comuns nos debates sobre o DSM, em
textos anteriores. Hoje, vou falar sobre outra: a confusão em considerar o viés
político e relações de poder envolvidos em toda relação humana e o método
científico.
Pense primeiro na arte. Dante escreveu seu épico poema sobre
os círculos do Inferno – estágios de sofrimento pelos quais a alma passaria
antes de se encontrar com o Capiroto. Ele reservou cada círculo para a alma com
um tipo de pecado. O círculo de mais sofrimento ele reservou aos mentirosos.
Ora, será sua imaculada criatividade? Sua genialidade? Sua mente à frente do
tempo? De onde diabos ele concluiu que mentirosos deveriam sofrer mais no
Inferno? Simples: Dante estava querendo se vingar dos detratores de suas obras,
pessoas que inventavam calúnias sobre sua arte. Como odiava-as em específico,
por esse problema pessoal, acabou refletindo tal conflito em sua criação.
É público e notório que o percurso científico não deu
somente graças à inventividade de gênios, aos méritos da metodologia científica
ou qualquer uma das características intrínsecas ao fazer ciência. Por exemplo,
no século XIX, mesmo após estar quase certo de sua teoria, Darwin não publicou
de cara A Origem das Espécies. Sua delonga ocorreu graças à sua esposa, que era
católica fervorosa. O inglês achou que fosse ferir os sentimentos e a fé da
mulher. Outro ponto interessante foi o motivo que fez Darwin de uma hora para
outra publicar o livro: este ficou sabendo que um outro pesquisador, Wallace,
tinha chegado às mesmas conclusões sobre a evolução das espécies.
Analisando agora, vieses mais profundos que esses, podemos
citar o desenvolvimento da teoria psicanalítica. Freud teoriza que o psiquismo
seria separado em dois: consciente e inconsciente. Diferentemente das teorias
cognitivas atuais, para a psicanálise, o inconsciente não era apenas uma questão
de processamento de informação, mas uma local da mente formado por tudo aquilo
que fora reprimido. Seria o porão da nossa consciência. E este porão seria uma
espécie de outro eu dentro de nós. Pois bem, muitos autores nesse mesmo período
e até antes, já tinham falado de inconsciente, mas Freud ficou com a fama. Por
que? Porque o momento em que ele desenvolveu seu trabalho foi mais propício e
teve mais visibilidade.
A própria modificação de sua primeira teoria, que se apoiava
em supostos abusos sexuais sofridos na infância, para uma diferente, em que na
realidade esses abusos e experiências sexuais precoces eram fantasias infantis,
teve influência de fatores sociais. Freud mesmo confessou que, se estivesse
certo em sua primeira ideia, grande parte das crianças de Viena eram abusadas
sexualmente. Claro que o escândalo consequente influenciou-o a pensar em outro
modo de pensar a questão do inconsciente, traumas e etc.
Freud não é um bom exemplo de cientista, mas o que espero
mostrar nesses exemplos é que é óbvio que fatores diversos interferem tanto
numa pesquisa quando nas interpretações de seus resultados. Aliás, o fato de um
dado fenômeno saltar aos olhos do pesquisador se deve a muitos fatores
sócio-culturais e interesses próprios diversos.
Atualmente, esses elementos são usados para desqualificar o
método científico, colocá-lo como mais um dentre muitos métodos, para
perscrutar a realidade. Isso também é um tanto óbvio. Existem diversas maneiras
de se estudar e ver o mundo, os fenômenos. No entanto, acho que o diferencial
óbvio da ciência é que ela se constitui de forma a testar suas próprias
hipóteses e reunir evidências para apoiá-las. Não trata-se apenas de alegações
soltas baseadas em pensamentos puros, razão pura e subjetividade. Claro, mesmo
com evidências, a subjetividade ainda age, mas obviamente que a capacidade de
se sujeitar a testes e retestes é um mérito. Todavia, também é claro que nem
tudo é passível de se testar cientificamente.
Na questão do DSM ou em qualquer outra que envolva ciência,
a crítica é a mesma: “Ah, você vê a ciência de modo romântico...a neutralidade
científica não existe, você está ignorando os conflitos de poder e interesses
dos cientistas.”
Não existe nada de novo nesse argumento. Mas não podemos
ignorar o método usado para se chegar a certos resultados e dizer que tais
resultados são frutos de algum interesse social ou sei lá o que. Pela última
vez: existe uma metodologia que embasa o decorrer de um estudo. Porém, o motivo
pelo qual dado fenômeno ssaltou às vistas do pesquisador, o motivo de ele ter
continuado a pesqisa e ter recebido verba e as interpretações dos resultados
obtidos, isso tudo é gerado por coisas da natureza do social, cultural e
subjetivo. Mas o que se faz com o método em si não é!