segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

O olhar da mente humanista e analítico de Sacks, sem perder a compostura

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O Olhar da Mente é mais do mesmo, posso dizer seguramente. Esse é o prelúdio geralmente de mal agouro para uma crítica literária, mas no caso de Sacks, não mesmo. Ser mais do mesmo significa que seu último livro não perdeu as características que tornam o neurologista e suas obras tão magníficas.
Creio que, apesar de ser um livro de relatos de caso entremeados com suas reflexões pessoais e profissionais, sua escrita agrada a qualquer um, do leigo ao especialista.
A combinação é perfeita: há a descrição de casos interessantíssimos, casos raros mas que ao mesmo tempo dizem muito sobre o sujeito neurotípico. Ao refletir sobre alguém que perdeu a visão, por exemplo, Sacks nos faz embarcar numa viagem pela vida pessoal do paciente, sua história de vida e experiências, além de como esses fatores foram afetados pela sua condição e como a situação foi encaixada em sua vida. São relatos muito vívidos e humanos, sem colocar o paciente como um peça de estudo puramente - o que agradaria bastante a maneira do neurocientista Antonio Damásio enxergar cérebro, corpo e mente.

No curso de psicologia é muito comum ouvir a crítica de que a psiquiatria, neurologia e neurociências tratam as pessoas como objetos frios de estudo, como máquinas. Eu tendo a discordar um pouco disso, mas comparando a escrita tão humana e literária do autor é impossível não comparar com a postura de muitos desses profissionais que perto de Sacks parecem realmente técnicos de informática descrevendo algoritmos de uma programação! (somente em termos de comparação! Não estou afirmando que sempre deve-se agir de um ou outro modo.)

Meu lado curioso e científico também fica muito bem satisfeito com suas obras. Olhando para a quantidade de trabalhos hoje publicados, é até engraçado pensar que ainda hoje existem pessoas que põem o dualismo cartesiano (no qual a mente seria uma substância totalmente separada do corpo, como um espírito mesmo) em alta conta, travando os mais sanguíneos debates quando alguém afirma que provavelmente o fisicalismo está certo (segundo o qual a mente não seria uma substância diferente da matéria, mas o resultado da atividade cerebral, ou a atividade cerebral em si mesma). E O Olhar da Mente nos faz chegar exatamente nesse ponto da discussão, mesmo indiretamente, através dos relatos de danos no cérebro que por menores que sejam trazem perturbadoras modificações na percepção, memória e até personalidade. E mesmo assim, vemos o quão humanos são os relatos do médico, o que anula de vez aquela propagada falácia de que um mundo fisicalista, monista, abriria as portas para a frieza psicopática das pessoas.

Oliver Sacks contraria isso até a respeito de si mesmo, quando nos últimos capítulos descreve de maneira emocional, sem deixar a razão e o olhar crítico e clínico de lado, e muitíssimo lúcida a sua situação com a cegueira de um dos olhos após lutar contra um tumor no olho direito. É impressionante sua resiliência. Enfim, com alguma sorte, cada um de nós que nos inspiramos com suas palavras poderemos um dia, quando chegarmos em sua idade, olhar para trás, olharmos para nós mesmos e nos vermos intelectuais tão completos em esferas tão diversas do saber, e ainda conservando uma humanidade incomum para com todos.