sábado, 4 de agosto de 2012

Em Busca da Memória

+A +/- -A


Em Busca da Memória é um livro que, como o título sugere, na minha percepção, trata a evolução do conhecimento científico de uma forma dinâmica, detalhada e interessante, fazendo com que o livro (que é bem grande) seja lido num ritmo frenético como se fosse um dos eletrizantes suspenses de Dan Brown. Essa foi a primeira e mais resumida impressão que tive desse maravilhoso e instigante livro que veio parar em minhas mãos depois de uma série de coincidências. 

O autor é o neurocientista Eric Kandel, um austríaco e judeu laico (como Einstein e Freud, por exemplo).A primeira vez que ouvi falar nesse nome foi quando uma amiga minha veio me contar sobre uma entrevista que ele tinha dado na Globo News, em que falara de sua vida de pesquisador e das descobertas revolucionárias no ramo da memória
Confesso que, de primeira, fiquei empolgado mas nem tanto, pois, pelo que li na internet, depois de ficar sabendo da tal entrevista, ele era do tipo de neurocientista que lidava com mecanismos moleculares do cérebro, relacionados à memória. E eu tenho uma má experiência com esse tipo de abordagem devido aos sofríveis primeiros períodos no curso de psicologia, em que eu era obrigado a fazer uma série de disciplinas relacionadas à biologia cujos professores eram ótimos mas - por um erro do sistema mais do que deles mesmos – não estavam tão preparados para dar tais disciplinas para alunos de psicologia, cujos interesses na maioria das vezes divergiam em muito do que uma abordagem biológica poderia oferecer. 

Então, após tentar assistir à entrevista de Kandel no próprio site do canal e não ter conseguido devido a um erro da própria página, deixei meu interesse no assunto em stand by. No entanto, após uma ou duas semanas, talvez, foi meu aniversário e essa mesma amiga  me deu o tal livro escrito por Kandel. O título me animou logo de cara e mais ainda depois que li rapidamente a introdução. 

Em Busca da Memória era uma espécie de autobiografia científica, em que Kandel narrava sua vida com especial ênfase no seu percurso intelectual até tornar-se um neurocientista. Esse foi um livro valiosíssimo porque além de relatar de forma profunda e instigante o funcionamento dos neurônios e processos moleculares por trás daquilo que chamamos de memória de curto e longo prazo – e de explicar de maneira bem melhor conceitos que eu tinha visto na faculdade e não tinha entendido bem, talvez, devido a minha não-familiaridade com o tema -, o neurocientista austríaco mostra com igual animação e carisma os motivos que levaram-no a ser o que é hoje. 

Kandel
Kandel data os primórdios de seu interesse pela memória de sua infância, que deu-se, lamentavelmente, numa Áustria nazista. E ele, seu irmão e seus pais, como judeus, podiam se dar muito mal. Ele lembra de um episódio em que oficiais nazistas foram em sua casa e pediram que abandonasse o local, o que levou-os a buscar abrigo na casa de outros judeus. A coisa ainda não tinha começado a ficar mortalmente complicadas para os judeus. Essa lembrança permaneceria viva até hoje em sua memória, o que o levaria, no início de sua vida acadêmica, a se perguntar como nosso cérebro faz para preservar lembranças tão vívidas como essa, que suscitavam ainda as mesmas emoções do evento original. 

Adicionalmente, influenciado, em parte, por seu irmão, Kandel foi interessando-se aos poucos também pelo ambiente extremamente intelectual da Viena do século XX. Era um contexto particularmente fértil para várias idéias curiosas e instigantes, tanto do ponto de vista científico quanto do filosófico e artístico. E isso fascinava a todos, inclusive ao jovem estudante. 

Todavia, ele teve de separar-se rapidamente de sua terra natal devido à ameaça nacional socialista, tendo seu pai mandado-o para os EUA para cursar sua faculdade e tornar-se um estudioso especializado nos importantes intelectuais vienenses. 


Um dado curioso e do qual muito se orgulha é que grande parte dessa vida inteligente austríaca devia-se a estudiosos judeus. Mesmo os que não eram praticantes – como Freud – herdavam a veia judaica do “povo do livro”, que, na Europa, criou as bases para que se transformassem num povo culto e pensador. Esse casamento entre sua adoração por viena, sua curiosidade pelo comportamento humano e o orgulho dos judeus que construíram a atmosfera vienense fez com que voltasse seus olhos para a psicanálise. 

Para Kandel, ela era um misto instigante de intelectualidade e ciência empírica, que ajudaria a decifrar a mente humana. Daí, para continuar com seus interesses, Kandel bandeou-se para o curso de medicina, necessário na época para a carreira de psicanalista. Eric tinha um inquebrantável interesse pelos processos responsáveis pelo surgimento da memória. Mas, os estágios em pesquisa necessários para concluir seu curso logo mostraram a ele que a metodologia usada pelos psicanalistas não eram tão empírica assim. Enquanto a psiquiatria avançava nos métodos para realizar suas pesquisas e desvendar o cérebro, a psicanálise permanecia teimosamente limitada a um método criado por seu fundador, que era afetado em demasia pela subjetividade do pesquisador. Assim, cada vez mais a área teve de se desviar para as sombras do conhecimento científico e dar lugar ao crescimento da psiquiatria com a abordagem biológica, contrariando a intenção inicial de Freud, que era criar uma ciência da mente.

E, assim, a sua carreira de neurocientista foi deslanchando. Seu trabalho e seu percurso me mostrou vários pontos interessantes não só sobre o funcionamento da fabulosa máquina chamada cérebro, mas sobre a vida também. 

Um episódio interessante foi uma conversa que Kandel teve com os pais de sua futura esposa, Denise. Eles eram judeus – não tão laicos como sua família – também e, assim, como todos, pareciam dar especial valor à erudição e à boa educação. Isso é peculiar tendo visto o fato de que são judeus, o que me faz pensar que às vezes o ateísmo subestime a capacidade intelectual das pessoas pelo simples fato de serem religiosas, praticantes ou não. Mas, ainda outro fato curioso sobre essa história é que os pais de Denise pareciam dar mais valor a essa atividade típica de Viena do que à riqueza material. Entretanto, esse tipo de riqueza era algo que a grande maioria dos judeus europeus compartilhavam. Será que eles entenderam desde cedo que a riqueza financeira é uma consequência de se crescer intelectualmente e fazer o que gostamos, mais do que perseguir paranoicamente o dinheiro diretamente? 

Em suma, esse livro me mostrou que a carreira científica é uma das melhores que existem, pois sempre podemos permanecer instigados atrás de novas descobertas, novos métodos, divulgando o que sabemos. E ouvir tudo isso da boca – ou ler tudo isso dos dedos – de um neurocientista ganhador do prêmio Nobel de Medicina ou Fisiologia é algo muito motivador! Mas, além disso, é explícito pelo modo de escrever, que Kandel ama o que faz desde o início mesmo, quando seu conhecimento era somente uma diversão necessária para completar seu curso de medicina, ou antes ainda, quando aventurava-se lendo as obras dos intelectuais do início do século passado. Assim, essa é uma obra que trata muito mais do que de assuntos acadêmicos, trata de uma vida bem vivida e empolgante.