Em Busca da Memória
é um livro que, como o título sugere, na minha percepção, trata a evolução do
conhecimento científico de uma forma dinâmica, detalhada e interessante,
fazendo com que o livro (que é bem grande) seja lido num ritmo frenético como
se fosse um dos eletrizantes suspenses de Dan Brown. Essa foi a primeira e
mais resumida impressão que tive desse maravilhoso e instigante livro que veio
parar em minhas mãos depois de uma série de coincidências.
O autor é o
neurocientista Eric Kandel, um austríaco e judeu laico (como Einstein e Freud, por exemplo).A primeira vez que ouvi falar nesse nome foi quando uma amiga
minha veio me contar sobre uma entrevista que ele tinha dado na Globo News, em que falara de sua
vida de pesquisador e das descobertas revolucionárias no ramo da memória.
Confesso que,
de primeira, fiquei empolgado mas nem tanto, pois, pelo que li na internet,
depois de ficar sabendo da tal entrevista, ele era do tipo de neurocientista
que lidava com mecanismos moleculares do cérebro, relacionados à memória. E eu tenho uma má
experiência com esse tipo de abordagem devido aos sofríveis primeiros períodos
no curso de psicologia, em que eu era obrigado a fazer uma série de disciplinas
relacionadas à biologia cujos professores eram ótimos mas - por um erro do
sistema mais do que deles mesmos – não estavam tão preparados para dar tais
disciplinas para alunos de psicologia, cujos interesses na maioria das vezes
divergiam em muito do que uma abordagem biológica poderia oferecer.
Então, após
tentar assistir à entrevista de Kandel no próprio site do canal e não ter
conseguido devido a um erro da própria página, deixei meu interesse no assunto
em stand by. No entanto, após uma ou
duas semanas, talvez, foi meu aniversário e essa mesma amiga me deu o tal livro escrito por Kandel. O
título me animou logo de cara e mais ainda depois que li rapidamente a
introdução.
Em Busca da Memória era uma espécie de autobiografia científica, em que Kandel narrava sua vida com
especial ênfase no seu percurso intelectual até tornar-se um neurocientista.
Esse foi um livro valiosíssimo porque além de relatar de forma profunda e
instigante o funcionamento dos neurônios e processos moleculares por trás
daquilo que chamamos de memória de curto
e longo prazo – e de explicar de
maneira bem melhor conceitos que eu tinha visto na faculdade e não tinha
entendido bem, talvez, devido a minha não-familiaridade com o tema -, o
neurocientista austríaco mostra com igual animação e carisma os motivos que
levaram-no a ser o que é hoje.
Kandel |
Kandel data
os primórdios de seu interesse pela memória de sua infância, que deu-se,
lamentavelmente, numa Áustria nazista. E ele, seu irmão e seus pais, como judeus, podiam se dar muito mal. Ele
lembra de um episódio em que oficiais nazistas foram em sua casa e pediram que
abandonasse o local, o que levou-os a buscar abrigo na casa de outros judeus. A
coisa ainda não tinha começado a ficar mortalmente complicadas para os judeus.
Essa lembrança permaneceria viva até hoje em sua memória, o que o levaria, no
início de sua vida acadêmica, a se perguntar como nosso cérebro faz para
preservar lembranças tão vívidas como essa, que suscitavam ainda as mesmas
emoções do evento original.
Adicionalmente,
influenciado, em parte, por seu irmão, Kandel foi interessando-se aos poucos
também pelo ambiente extremamente intelectual da Viena do século XX. Era um contexto
particularmente fértil para várias idéias curiosas e instigantes, tanto do
ponto de vista científico quanto do filosófico e artístico. E isso fascinava a
todos, inclusive ao jovem estudante.
Todavia, ele
teve de separar-se rapidamente de sua terra natal devido à ameaça nacional
socialista, tendo seu pai mandado-o para os EUA para cursar sua faculdade e
tornar-se um estudioso especializado nos importantes intelectuais vienenses.
Um dado
curioso e do qual muito se orgulha é que grande parte dessa vida inteligente
austríaca devia-se a estudiosos judeus. Mesmo os que não eram praticantes –
como Freud – herdavam a veia judaica do “povo do livro”, que, na Europa, criou
as bases para que se transformassem num povo culto e pensador. Esse casamento
entre sua adoração por viena, sua curiosidade pelo comportamento humano e o
orgulho dos judeus que construíram a atmosfera vienense fez com que voltasse
seus olhos para a psicanálise.
Para Kandel,
ela era um misto instigante de intelectualidade e ciência empírica, que
ajudaria a decifrar a mente humana. Daí, para continuar com seus interesses,
Kandel bandeou-se para o curso de medicina, necessário na época para a carreira
de psicanalista. Eric tinha um inquebrantável interesse pelos processos
responsáveis pelo surgimento da memória. Mas, os estágios em pesquisa
necessários para concluir seu curso logo mostraram a ele que a metodologia usada
pelos psicanalistas não eram tão empírica assim. Enquanto a psiquiatria
avançava nos métodos para realizar suas pesquisas e desvendar o cérebro, a
psicanálise permanecia teimosamente limitada a um método criado por seu
fundador, que era afetado em demasia pela subjetividade do pesquisador. Assim,
cada vez mais a área teve de se desviar para as sombras do conhecimento
científico e dar lugar ao crescimento da psiquiatria com a abordagem biológica,
contrariando a intenção inicial de Freud, que era criar uma ciência da mente.
E, assim, a
sua carreira de neurocientista foi deslanchando. Seu trabalho e seu percurso me
mostrou vários pontos interessantes não só sobre o funcionamento da fabulosa
máquina chamada cérebro, mas sobre a vida também.
Um episódio
interessante foi uma conversa que Kandel teve com os pais de sua futura esposa,
Denise. Eles eram judeus – não tão laicos como sua família – também e, assim,
como todos, pareciam dar especial valor à erudição e à boa educação. Isso é
peculiar tendo visto o fato de que são judeus, o que me faz pensar que às vezes
o ateísmo subestime a capacidade intelectual das pessoas pelo simples fato de
serem religiosas, praticantes ou não. Mas, ainda outro fato curioso sobre essa
história é que os pais de Denise pareciam dar mais valor a essa atividade
típica de Viena do que à riqueza material. Entretanto, esse tipo de riqueza era
algo que a grande maioria dos judeus europeus compartilhavam. Será que eles
entenderam desde cedo que a riqueza financeira é uma consequência de se crescer
intelectualmente e fazer o que gostamos, mais do que perseguir paranoicamente o
dinheiro diretamente?
Em suma, esse
livro me mostrou que a carreira científica é uma das melhores que existem, pois
sempre podemos permanecer instigados atrás de novas descobertas, novos métodos,
divulgando o que sabemos. E ouvir tudo isso da boca – ou ler tudo isso dos
dedos – de um neurocientista ganhador do prêmio Nobel de Medicina ou Fisiologia
é algo muito motivador! Mas, além disso, é explícito pelo modo de escrever, que
Kandel ama o que faz desde o início mesmo, quando seu conhecimento era somente
uma diversão necessária para completar seu curso de medicina, ou antes ainda,
quando aventurava-se lendo as obras dos intelectuais do início do século
passado. Assim, essa é uma obra que trata muito mais do que de assuntos
acadêmicos, trata de uma vida bem vivida e empolgante.