sábado, 25 de maio de 2013

A discussão sobre o DSM continua: mas será que as críticas estão, todas as vezes, corretas?

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Depois que escrevi um texto criticando o artigo da Eliane Brum, muitos comentários surgiram, principalmente no facebook. Eles foram bem relevantes pois só me fizeram constatar algo que já percebia há tempos: as pessoas das áreas de Humanas não entendem bem como funcionam outras áreas. E, em parte, isso não é culpa exclusiva dos alunos, mas de todo um sistema que sustenta uma guerrinha besta entre os “biologizantes e os humanistas”, como se meio ambiente, organismo e comportamento estivessem desconectados. Inclusive, já abordei temas relacionados a isso por aqui

Os alunos e o público em geral não compreendem bem a relação entre biologia, comportamento, mente, cérebro, psicologia, subjetividade, ambiente, cultura, sociedade e etc. Na teoria, eles (galera de Humanas) dizem que todos esses elementos nos atravessam, resultando no que somos, mas na prática, vá numa sala de aula tentar explicar humildemente o aspecto biológico de dado comportamento. Virá uma avalanche de adjetivos como reducionista, determinista, biologizante e etc. Mas se você menciona influências sociais, aí é aplaudido; não precisa nem dizer que outroas esferas interferem na questão, só o social os satisfaz (Leia Inato x Aprendido 1 e 2).
 Não trata-se de negar o social e o cultural. É nítido para qualquer um que produzimos essas instâncias e ao mesmo tempo somos influenciados por ela. O problema é não enxergarmos que existem outras a serem analisadas igualmente. Em uma aula, inclusive, a professora debatia sobre o que é reducionismo e por que uma abordagem que não leve em conta a cultura e sociedade seria reducionista. Essa formulação do problema me incomodou um pouco: “Mas, professora, por que isso? A meu ver, todas as áreas de estudo são reducionistas de alguma maneira, afinal, cada uma vai analisar um mesmo fenômeno sob o seu ponto de vista, ignorando didaticamente os outros. Seria impossível estudar a pobreza e traçar as causas culturais, individuais, subjetivas, sociais, governamentais, econômicas e etc. Assim, cada área cuida de sua parte, apesar de não negar outros ‘causadores’ envolvidos aí. Portanto, ser reducionista é um requisito para se fazer ciência, para se estudar algo. Não vejo esse termo como um demônio a ser exorcizado.” 

Ela respondeu que de acordo com o ponto de vista da psicologia social, eu estava errado: para ser reducionista, basta não considerar explicitamente as influências sócio-culturais. Achei esse ponto de vista bem injusto e manipulador. Manipulador por ele beneficiar tão descaradamente uma única visão em detrimento das outras. 

Mas, voltando ao tópico central que resolvi abordar aqui, digo que estudantes de Humanas não entendem bem as várias  influências no comportamento, falo isso em nome de vários equívocos que cometem ao criticar a psiquiatria e a neurociência, principalmente. Por exemplo, amigos e colegas meus da psicologia questionam os medicamentos dados às pessoas que sofrem de algum transtorno. Baseiam essa crítica nos contextos sociais que influenciam para mais ou para menos o surgimento desses transtornos. Desse modo, diriam eles, não tem como os transtornos estarem relacionados à fatores genéticos (1) ou mesmo a algum tipo de química cerebral (2), afinal, o ambiente é que parece estar produzindo esses estados. 

(1) Primeiramente, o fato de algum transtorno ter base genética nada tem a ver com ele ser imune ao ambiente. Os nossos genes funcionam como interruptores. Na sua casa, basta que simplesmente você tenha um interruptor e uma lâmpada para que ela acenda? De jeito nenhum, é preciso que você use seu dedo e pressione o interruptor. Nossos genes são assim, só que o dedo que os pressiona, são os fatores ambientais. Eles atuam ligando e desligando nossos genes. Portanto, se você tem um ou mais genes que te predispõem à depressão, fique tranquilo que não necessariamente você vai desenvolvê-la. É preciso toda uma infinidade de fatores ambientais (em alguns casos, nem tantos assim, mas de qualquer modo a depressão não surgirá do nada só porque existe a propensão genética). 

Esse tropeço interpretativo me lembra as aulas de um professor. Ele sempre dizia que não tinha lógica que a genética tivesse algo a ver com comportamentos, cognições ou que for. O argumento-chave dele era que não pode-se escolher se a gravidade vai agir ou não. É uma lei da natureza e como tal é inescapável. Com a genética seria a mesma coisa. Se temos um gene específico, os efeitos dele aparecerão quer queiramos, quer não. Se amparando no que expliquei acima, essa é uma afirmação que revela um profundo desconhecimento de o que é a genética. 

(2) Nesse caso, ocorre o mesmo tipo de falácia. É como se o cérebro só entrasse na história se a pessoa tivesse alguma lesão ou nascesse com o órgão defeituoso. Aí sim remédios seriam justificáveis. Nessa linha, já cansei de ouvir estudantes colegas meus dizendo “Como o TDAH pode ser tratado com medicação se tudo indica que a nossa geração, tendo que fazer tantas coisas ao mesmo tempo, tendo que se dividir entre tantos estímulos, tem altos índices do transtorno devido a essas contingências ambientais? Como pode haver algo de errado com o cérebro das pessoas?”. 


Não, essas crianças não estão imaginando em imagens o que estão lendo. Elas estão simplesmente sem prestar atenção alguma ao que estão lendo, porque suas cabeças estão preocupadas com outros pensamentos (TDAH). E é muito difícil para elas retomar o controle. Sim, pode ser "só" um jeito diferente de ser no mundo, mas é um modo diferente de ser que nos prejudica e que precisa ser mudado.
Isso é até confuso de começar a explicar, pois uma coisa não tem nada a ver com a outra. Até onde sabemos – esse modelo tem funcionado bem – tudo o que somos, nosso “eu”, incluindo aí processamentos conscientes e inconscientes, aparecem graças ao funcionamento cerebral (digo “cerebral” mas quero me referir ao funcionamento do sistema nervoso e do organismo como um todo – já que não consigo ver como podemos existir só com a atividade do sistema nervoso, desde que li sobre os marcadores somáticos, em O Erro de Descartes, escrito por Antonio Damásio). Então, digamos que uma pessoa tenha nascido com uma modificação no córtex pré-frontal que tenha impossibilitado que ela desenvolvesse o tipo de atenção necessária ao bom desempenho de tarefas que exigem concentração. As ressonâncias magnéticas mostrarão a modificação na região afetada. Agora, considere que outro indivíduo nasceu com o córtex pré-frontal normal. Todavia, no início de sua vida não foi exposto a estímulos ambientais que treinassem essa preciosa atenção. Mais tarde, se fizer um exame de ressonância, serão detectados os mesmos indícios em seu córtex pré-frontal, comparando com a criança do exemplo anterior. 

Repare: no primeiro caso, uma anomalia genética impossibilitou o desenvolvimento normal de sua região cortical pré-frontal. No segundo, não foi um traço genético, mas os estímulos ambientais que não foram capazes de “ligar” os genes que acionam a neuroplasticidade, que é a base neural do aprendizado e desenvolvimento das mais diversas capacidades. Nos dois casos tivemos a mesma modificação cerebral, mas as causas variaram. 


Isso é o oposto da visão propagada tradicionalmente pelo senso comum, que parecem achar que somente há modificação cerebral quando há uma mutação genética desde o nascimento, mas quando trata-se de algo de natureza externa (social e cultural) é como se o mesmo conjunto de sintomas (o de TDAH, que é o do exemplo citado) se relacionassem com algum tipo de substância mental diferente da substância do corpo – algo que lembra muito o ultrapassado dualismo de substância cartesiano. 

Essa é minha crítica, mas não me entendam mal. Muito disso não é culpa dos alunos, mas culpados professores que parecem estar presos demais à autores que criticam a psiquiatria do século XIX e até a de hoje, reproduzindo críticas que não cabem mais e até críticas que cabem muito bem hoje em dia, mas que são feitas por quem não entendeu primeiro como funcionam as áreas criticadas. É como o caso da metodologia científica: ela é cotidianamente criticada em vários aspectos, mas na faculdade não aprendemos primeiro o método científico para depois criticá-lo, só aprendemos a falar mal dele. Isso é uma deficiência de currículo que faz os alunos reproduzirem críticas bem-vindas mas também repetirem erros baseados na falácia do espantalho.