Observador: Eles são odiados por terem o que outros não tem: poder, distinção, propósito.
-Terra X - 00
No último post sobre o Homem Aranha, tentei especular filosoficamente sobre o que faria com que alguém com
super-poderes não se tornasse um Hitler – ou um Duende Verde - , escolhendo
servir ao bem de todos, muitas vezes em troca de apuros na vida pessoal e até
ataques pessoais às suas melhores ações. Agora, acho que vale a pena elucubrar
sobre, especificamente, o que faz com que as pessoas tripudiem e recriminem o
herói, quando suas intenções – e ações – são sempre as melhores. Isso não é
muito injusto e incoerente?
Em Deveria o Homem Aranha ser um herói? citei o conteúdo do diálogo entre Sócrates e Glauco,
compilado por Platão, seu discípulo. Seu mestre acreditava que seguir a Justiça
era o destino que nos guiava até a felicidade, em detrimento dos bens materiais
e fama. No entanto, Glauco alegava que essa visão não refletia a realidade e,
inclusive, quem ousasse abdicar da fama e da riqueza, em prol de altos valores
morais, seria ridicularizado pelo povo, tratado como um imoral, criminoso.
A filosofia
explicando o ódio aos heróis
Milênios
depois, o filósofo Kierkegaard
explorou a temática, chegando à
conclusões parecidas, postulando o que chamaria de “duplo perigo”. Essa é uma questão que refere-se ao altruísmo e suas
consequências. Como cristão, Kierkegaard focou seus esforços no amor cristão.
Jesus – segundo os evangelhos que contam suas histórias, que chegaram a nós
após diversas cópias – é autor da máxima que diz que devemos amar ao próximo
como a nós mesmos. (De fato, esse é um
conselho presente em muitas tradições anteriores, talvez dito somente em outras
palavras, como no budismo, taoísmo, confucionismo; mas isso não vem ao caso
agora.) Com certeza, isso não é algo fácil de cumprir, existindo algumas
dificuldades no percurso de alcançar um altruísmo desse tipo.
Kierkegaard |
Para esse
filósofo cristão, esse amor
incondicional implicaria em um primeiro
perigo. Teríamos nós que abdicar de nossos desejos pessoais, de nosso ego,
travando uma briga interna. Mas essa não é a pior parte. Superado esse entrave,
Kierkegaard diz que surgiria outro obstáculo, dessa vez, externo. Alguém que
alcançou tal nível de realização, certamente representa a superação dos limites
normais humanos no que concerne à prática do altruísmo, limite esse não muito
alto. Isso significa que esse indivíduo passaria a contribuir para o bem de
todos mas, por outro lado, seria o símbolo que lembraria a todos os demais que
eles tem um compromisso para com o próximo, que está sendo negado a todo
instante. Imagino que seja algo semelhante à situação em que, passando pela
rua, vemos um mendigo e negamos contribuir com uma moeda. Em seguida, passa
alguém e deixa uma nota de R$2,00 para o cidadão. Esse doador compadecido com a
dor do morador de rua é alguém que, naquele momento, nos lembrou que podíamos
ter ajudado mas nos recusamos a fazê-lo. E, em situações mais extremas em nivel
moral do que uma simples esmola, as pessoas tendem a reagir de forma
inesperada, isto é, não reconhecendo sua falha, sua mesquinharia e
egocentrismo, mas indo com fúria em direção àquele que mostrou sua negligência.
Aquele que detém o verdadeiro amor ao próximo e age como tal, assim, será tratado
com violência (verbal e/ou física),
desprezo e escárnio, sendo chamado de “otário” ou sendo ridicularizado
por ter abdicado de si mesmo e prol dos outros.
O reflexo na
mitologia
Curioso é
também o fato de a religião explorar bem esse tema. A figura central do
Cristianismo, por exemplo, é Jesus, que – segundo os evangelhos canônicos – era Filho de Deus, sendo também uma
divindade – ou o próprio Deus. Seus poderes, assim, seriam infinitos, mas mesmo
assim escolheu se doar ao próximo e mostrar quase nada de seu potencial divino.
Buda, antes um príncipe indiano da rica casta dos guerreiros, abdicou também de
tudo isso em busca do altruísmo, da prestação de alguma ajuda ao próximo. E
como ambos foram tratados? Jesus foi ridicularizado e condenado à morte. Buda
foi traído por um de seus discípulos, apesar de não ter morrido [para ler sobre mais semelhanças curiosas entre Jesus e Buda, clique aqui]. Essas são
histórias que, narrando eventos históricos ou não, mostram que essas questões e
conclusões humanas se repetem mesmo na Mitologia.
Homem Aranha salvando os passageiros de um trem, numa clara alusão à crucificação de Jesus |
O que os
quadrinhos nos dizem
Em Homem Aranha, no primeiro encontro do
cabeça de teia com o Duende Verde, ocorre um diálogo interessante. Não
reproduzirei na íntegra, mas lembro que o Duende diz que o herói devia estar muito empolgado com
seu desempenho, sendo um ser extraordinário usando seus poderes em prol do bem
de todos. E as pessoas estavam festejando isso. No entanto, existe algo que as
pessoas adoram mais do que serem salvas ou verem um herói acabar com o mal:
elas gostam mais de vê-lo cair.
Acho que o
Duende, em toda sua insanidade, tem completa razão. E a explicação para isso talvez
seja a mesma que eu dei para a raiva contida que sentimos toda vez que alguém
dá a esmola em nosso lugar. E, nas histórias do Homem Aranha existe um
personagem que é o arquétipo desse lado mesquinho humano: J. Jonas Jameson, o
chefe do Clarim Diário. É impressionante o modo como Jameson tenta arruinar a
vida de Peter, querendo a todo custo convertei suas boas ações em atos
criminosos e sem escrúpulos. Talvez ele, mais do que outros, em sua extrema
arrogância, mesquinharia e visão tacanha, sinta-se envergonhado de ser como é e
sinta-se cegado pela luz ofuscante do verdadeiro altruísmo do Homem Aranha, ou
pela existência de um propósito nobre que rege sua existência, não só os que
naturalmente regem a vida da maioria das pessoas: enriquecer.
1- As ilustrações desse post são de autoria de Alex Ross, retiradas do clássico da Marvel de 4 edições: Marvels
2- A frase que abre o post foi retirada da série Terra X, outro clássico Marvel ilustrado pelo artista.